Fim da gotinha: especialistas explicam importância da troca da vacina oral contra a pólio pela injetável

Mudança que será implementada a partir de 2024 segue recomendação da OMS e garante alta proteção, com menos doses

Por Giulia Vidale — São Paulo


Criança recebe vacina oral contra a Polio, a famosa gotinha. Agência O Globo

Recentemente, o Ministério da Saúde anunciou a substituição da vacina da poliomielite oral – a famosa gotinha – pela versão injetável. A Vacina Inativada Poliomielite (VIP), já é aplicada pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) nas três primeiras doses. A partir do primeiro semestre de 2024, ela também será utilizada no reforço.

A mudança foi amplamente debatida e aprovada pela Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização (CTA) e é baseada em recomendações feitas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como parte do plano de erradicação da pólio, e pela Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

— A OMS recomenda que os países suspendam o uso da vacina oral e passem a usar apenas a injetável. O Brasil começou esse processo há alguns anos, quando passou a oferecer a vacina injetável nas três primeiras doses. Agora, chegou o momento de completarmos o esquema de retirada da gotinha, como muitos países já fizeram — diz o pediatra e infectologista Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

A Vacina Oral Poliomielite (VOP), também chamada de gotinha ou vacina Sabin, por ter sido desenvolvida pelo microbiologista Albert Sabin na década de 1950, é a mais utilizada contra o vírus. Pela facilidade de aplicação, o imunizante conseguiu atingir altas coberturas pelo mundo, eliminando o vírus de diversos países.

No Brasil, o imunizante oral contra a pólio foi um marco. Além de ter dado origem ao famoso Zé Gotinha, que se tornou o símbolo das Campanhas de Vacinação, o imunizante foi o grande responsável por tornar o Brasil livre da doença que causa a paralisia infantil.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1975, antes da vacinação generalizada, quase 6 mil crianças ficaram paralisadas nas Américas, em razão da poliomielite. O último caso de pólio foi registrado o no país em 1989 e desde 1994 o Brasil está oficialmente livre da doença.

— O grande mérito da gotinha foi o fato de ser uma vacina que imunizava tanto o indivíduo que recebia a dose quanto aqueles ao seu redor que não compareciam às campanhas de vacinação. Em uma época com milhares de casos de pólio, isso era extremamente necessário — explica o infectologista Daniel Jarovsky, do Sabará Hospital Infantil.

Esse efeito comunitário da vacina oral é justamente o motivo pelo qual ela está sendo gradativamente substituída. A VOP é feita com o vírus atenuado, ou seja, enfraquecido. Após receber a vacina, as crianças acabam eliminando-o pela saliva e pelas fezes por semanas.

O problema é que há raras ocasiões em que esse vírus eliminado no ambiente sofre uma mutação que reverte sua virulência. É o que especialistas chamam de poliovírus derivado da vacina. Enquanto o vírus vacinal original não tem capacidade de causar sintomas da doença, o poliovírus derivado pode causar sintomas de pólio, incluindo paralisia, em indivíduos não imunizados.

Graças ao sucesso das campanhas de vacinação, atualmente, o vírus selvagem da pólio circula apenas em dois países: Afeganistão e Paquistão. Portanto, casos de poliomielite causada pelo vírus selvagem são raros. Neste ano, a OMS registrou poucos mais de uma dezena. Por outro lado, os casos derivados de vacina já somam centenas.

— Controlamos tanto a circulação do vírus selvagem que hoje temos mais casos de pólio causados pelo vírus vacinal que está no ambiente do que pelo vírus selvagem — pontua Kfouri.

O uso integral da VIP, também chamada vacina Salk, por ter sido desenvolvida pelo cientista Jonas Salk na mesma época do outro imunizante, acaba com esse risco dado que ela é feita com um vírus inativado, ou seja, morto. Com isso, não há o risco de ele sofrer mutações e se disseminar.

Por outro lado, os especialistas ressaltam que independente da vacina administrada, os casos de pólio selvagem ou derivada da vacina só vão acontecer em pessoas não vacinadas.

— Estar com cobertura vacinal alta é o grande fator protetor — afirma o presidente de Imunizações da SBP.

Novo esquema de vacinação

Atualmente, o esquema de vacinação contra a poliomielite no Brasil prevê a aplicação de cinco doses da vacina: são três injeções aplicadas no primeiro ano de vida com a VIP, aos 2, 4 e 6 meses. Seguida de duas doses de reforço feitas com a gotinha. A primeira aos 15 meses de idade e a segunda, aos 4 anos.

Após a transição, a dose de reforço aplicada aos 4 anos não será mais necessária e o Calendário Nacional de Vacinação contra a pólio contará com apenas quatro doses.

Ou seja, a partir de 2024, a vacinação contra poliomielite funcionará da seguinte maneira:

  • Primeira dose: vacina injetável, aos 2 meses de vida;
  • Segunda dose: vacina injetável, aos 4 meses de vida;
  • Terceira dose: vacina injetável, aos 6 meses de vida;
  • Quarta dose: vacina injetável, aos 15 meses de vida.

Cobertura vacinal e risco de volta da polio

Desde 1989, não há registros de casos de pólio no Brasil. No entanto, a baixa cobertura vacinal associada ao processo de imigração constante, saneamento inadequado, falta de vigilância ambiental e um caso descoberto neste ano no Peru, acendem o alerta para o risco de a doença voltar a circular.

No ano passado, a cobertura vacinal para a doença ficou em 77,16% no país, segundo dados do Ministério da Saúde. A taxa representa um aumento em relação aos anos anteriores, mas ainda está muito abaixo dos 95% recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para impedir a circulação do vírus

— Interrompemos as constantes quedas na taxa de cobertura vacinal, mas ainda estamos longe do ideal— avalia Kfouri.

Sintomas e prevenção

A pólio é contagiosa podendo infectar crianças e adultos por meio do contato direto com fezes ou com secreções eliminadas pela boca das pessoas doentes. As consequências da poliomielite normalmente correspondem a sequelas motoras e não há cura. Os principais efeitos da doença são ausência ou diminuição de força muscular no membro afetado e dores nas articulações.

Embora ocorra com maior frequência em crianças, a poliomielite também pode contaminar adultos que não foram imunizados. Por isso, é fundamental ficar atento às medidas preventivas, como lavar sempre bem as mãos, ter cuidado com o preparo dos alimentos e beber água tratada.

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