Patrícia Kogut
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Se nada desse certo em “Betinho: No fio da navalha”, o trabalho fabuloso de Júlio Andrade já justificaria a atenção do leitor. Dito isso, vamos às muitas outras razões para recomendar vivamente a série de oito episódios que terá os dois primeiros lançados amanhã pelo Globoplay.

Somos apresentados a Betinho ainda casado com Irles Carvalho (Leandra Leal), nos anos 1960, sofrendo com uma crise de úlcera. É o pretexto para informar sobre a saúde precária e a hemofilia herdada da mãe (Silvia Buarque e Walderez de Barros). A narrativa (criação de José Júnior, roteiro de Alex Medeiros, direção-geral de Lipe Binder) recua até a infância dele (nessa fase interpretado por Antonio Haddad, de “Os outros”). Foi quando a tuberculose levou a família a isolá-lo dentro de casa. A qualidade da produção fica evidente desde o início, mas a temperatura vai subindo aos poucos.

O primeiro capítulo é descritivo. Ele contextualiza os acontecimentos, além de acionar alguns botões para acertar o coração do espectador. Assim, ouvimos o lindo verso de “Sinal fechado” que fala em “pegar meu lugar no futuro”, na voz de Elis Regina, a mesma cantora de “O bêbado e o equilibrista”. Há algumas doses de panfletarismo — talvez inevitável — nas cenas em que Betinho, na clandestinidade, se emprega numa fábrica de louças e coopta operários para a sua causa. É quando se apaixona por Maria (Julia Shimura), que será sua segunda mulher. Seguem-se imagens de arquivo, vemos Médici, a Ponte Rio-Niterói, os sindicalistas em São Bernardo do Campo, o Chile com Pinochet etc. A certeza de que “No fio da navalha” é bem mais do uma biografia correta vem mesmo com força no segundo episódio. Acontece na sequência da volta do exílio, no Galeão. Nela, os atores se misturam aos registros de reais de figuras como Fernando Gabeira sendo festejadas ao voltar para o país, que finalmente se abria para a democracia. Nessa hora, preparem os lenços: a voltagem sobe muito.

O elenco é integralmente de talentos. Sem dizer que os atores, juntos, esbanjam química nas cenas em que a família Souza se reúne em almoços de domingo diante da TV para ver o futebol. Finalmente, o trabalho de caracterização (Martín Macías Trujillo) merece todos os elogios.

Agora, volto a Júlio Andrade e ao início desse texto. A entrega dele é irrestrita e impressionante. Seu trabalho perfeito resulta num Herbert de Souza real, imenso, com suas virtudes e falhas, ou seja, corajosamente imperfeito. É um caso raro em que o mergulho técnico profundo não compromete a dimensão humana do personagem. Cada milímetro dessa imersão tem cálculo, mas o ator transpira pura emoção. O que ele faz é grandioso.

A série é ambiciosa: tenciona retratar uma figura que morreu em 1997, mas cujo recado segue ecoando. A frase-manifesto “Quem tem fome tem pressa” não é de Betinho, mas ele atribuiu outro valor a essa urgência. E “No fio da navalha” dá o recado desejado com louvor.

betinho — Foto: divulgação
betinho — Foto: divulgação
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