Numa cena da terceira temporada de “O Urso”, a chef Andrea Terry (Olivia Coleman) fala a um grupo de colegas sobre sua trajetória profissional. Ela rememora o início da carreira, quando trabalhou num restaurante em Londres. Diz que ao longo de sete anos viu fregueses crianças se tornarem adolescentes, e adolescentes, por sua vez, virarem adultos. “No fim das contas”, frisou, “as pessoas não se lembram da comida; elas se lembram mesmo apenas das pessoas”. A pensata é pura metalinguagem. Ambientada num restaurante, a série pode até parecer ser sobre comida. Mas não é. Ela se fixa em seus personagens, nos tropeços deles, em sua luta diária e em sua evolução. O que Terry verbaliza é a frase-guia da história.
Na terceira temporada, as relações continuam importando mais que os pratos mais refinados que aparecem na tela. Esta nova leva de episódios (são dez, na Disney+) promete repetir o feito do passado e levar uma chuva de prêmios. Merecidos. A trama se aprofunda nos conflitos. O roteiro é uma faca afiadíssima e a direção, excepcional.
Desde a estreia, “The Bear” encantou e surpreendeu por confundir linguagens. É um drama, mas com grande parte das cenas filmadas como se fosse um reality. A situação de confinamento é uma constante. Tudo parece ao vivo, com a voltagem lá no alto e o pé afundado no acelerador. A câmera raramente está aberta numa paisagem. Ela fica quase sempre fechada no rosto dos atores. Esse foco máximo na emoção é um instrumento de manipulação do espectador. O público embarca naquela montanha-russa de discórdia, de gritaria e de cansaço. Carmen (Jeremy Allen White) não é só um chef talentoso. Ele é obsessivo para além da gastronomia — seja quando esfrega uma bancada da cozinha, seja ao ajeitar uma estante. Seu desespero na busca pela perfeição idealizada contagia toda a história. É a alavanca de quase todos os conflitos. O restaurante, principal cenário, é um lugar de brigas e relações abusivas entre pessoas que se amam mas não deixam esse afeto fluir.
“The Bear” é ao mesmo tempo uma das melhores séries em cartaz e recheada de cenas difíceis de assistir.
Destaco dois momentos excepcionais. O primeiro episódio é encantador. Quase sem diálogos, ele parece até um clipe. Voltar ao ar depois de um longo hiato com um capítulo tão diferente de tudo é uma mostra de coragem. Assim, de cara, “The Bear” consegue, mais uma vez, subverter padrões. E o oitavo, com uma participação arrebatadora de Jamie Lee Curtis — não vou detalhar para desviar do spoiler.
Os personagens se desenvolvem num arco primoroso desenhado pelo roteiro. O elenco é excelente, sem degraus. Os personagens são acareados o tempo todo com seus monstros pessoais. Assim, “The Bear” não facilita a vida de ninguém — nem a deles nem a do público.
Se prepare para comer o peixe com espinhos mais delicioso do streaming.