Crítica
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Por Patrícia Kogut

Os primeiros minutos de “Treta”, série recém-lançada na Netflix, atiram os personagens centrais numa espuma de ódio. São dez episódios imperdíveis.

Danny (Steven Yeun) e Amy (Ali Wong) se estranham no estacionamento de uma loja de material de construção em Los Angeles. Ele dirige uma caminhonete velha. Ela está ao volante de um carro caro. Depois de se xingarem, abrem uma perseguição hostil no trânsito. A narrativa começa com a voltagem lá em cima. A eletricidade da trama se aprofunda progressivamente até chegar ao seu paroxismo. Assim, e sem moralismos, “Treta” vai explorando todas as facetas do ódio. Inclusive o seu potencial transformador.

O duelo feroz entre dois desconhecidos que nem se avistam — ele sequer nota que ela é uma mulher — lembra “Encurralado”, um clássico de Steven Spielberg dos anos 1970. Diferentemente do filme, entretanto, a ação se transfere para outros cenários. Desse início em que ninguém se enxerga de perto, o enredo pula para a intimidade dos dois personagens.

Danny nasceu na Coreia e emigrou para Los Angeles ainda criança com os pais e o irmão menor. Foi uma vida de batalhas até a falência e o regresso do casal, sem dinheiro, para a terra natal. O rapaz faz pequenos consertos nas casas de pessoas ricas. Divide com o irmão um apartamento no motel que foi da família, uma espelunca.

Amy também tem ascendência coreana, mas, diferentemente de seu opositor, prosperou. Mora num bairro elegante. É empresária e gere um negócio de milhões, que fundou. Seu marido bonitão, George (Joseph Lee), não trabalha e cuida da casa e da filha pequena. Destalentado e mimado pela mãe, ele vive na sombra da fama do pai, um designer japonês famoso que já morreu.

Os protagonistas têm em comum o treino para controlar os sentimentos. Essa repressão permanente torna a tarefa dos atores ainda mais desafiadora. É preciso expressar o que os abala, mas sem expor muito — e Steven Yeun e Ali Wong arrebatam. Seus personagens passam por diversas chaves de emoção e atravessam todas as pequenas nuances com brilho. A narrativa leva fúria a cenários plácidos, como as montanhas que cercam Los Angeles e uma casa construída de acordo com os melhores manuais da arquitetura minimalista japonesa. O contraste reflete bem o enredo cheio de sacolejos.

“Treta” é de difícil classificação. Há doses de drama e ação, algum sangue, doçura e até psicodelismo. Lembra ainda filmes de Tarantino, de Woody Allen e até de Walt Disney. Mas é originalíssima. Promete ganhar prêmios e merece toda a sua atenção.

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