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Análise: Constituinte do Chile é progressista e plural como as ruas, mas fragmentação torna novo pacto social uma incógnita

Apesar de direita sair derrotada, campo vencedor é muito fragmentado, levantando dúvidas sobre como será a cooperação entre os blocos
Giovanna Grandón, conhecida como tia Pikachu, uma das constituintes eleitas como independente, que é transportista escolar da periferia de Santiago, em 23 de março de 2021 Foto: Martin Bernetti / AFP
Giovanna Grandón, conhecida como tia Pikachu, uma das constituintes eleitas como independente, que é transportista escolar da periferia de Santiago, em 23 de março de 2021 Foto: Martin Bernetti / AFP

Desde a sua eclosão em 2019, as manifestações do Chile foram marcadas por um caráter progressista, mas heterogêneo. Algumas demandas, como uma maior rede de proteção social e direitos para mulheres e povos indígenas, podiam ser identificadas como pautas de esquerda. A natureza horizontal e turbulenta do movimento, no entanto, tornava difícil resumir as suas exigências.

Esses elementos das ruas — progressismo e pluralidade — estão presentes na Constituinte recém-eleita. A direita sai derrotada, sem ter alcançado um terço das cadeiras para barrar medidas, mas o campo vencedor é muito fragmentado e diverso, e não se sabe como irá cooperar.

— Depois do plebiscito no ano passado houve a dúvida se o voto pelo sim tinha vindo todo da esquerda ou da centro-esquerda, porque havia pessoas de direita dizendo-se favoráveis a uma nova Constituição. A votação de domingo nos confirmou que a maioria dos votos ia do centro à esquerda — afirmou Julieta Suárez Cao, cientista política da Universidade Católica do Chile. — A grande interrogação é como irão se articular. Há muitos blocos, e muitas pessoas independentes.

A Lista do Povo ilustra essa pluralidade. O agrupamento de independentes  — cuja maior estrela é a tia Pikachu, manifestante que se notabilizou por protestar fantasiada como Pokémon — reúne personalidades e grupos organizados fora dos partidos.

Um dos objetivos listados em seu site é “pressionar o governo e o sistema político para que deixem de privilegiar os partidos, que decidiam pelo povo e contra o povo”. Seus candidatos obtiveram 884 mil votos, 40 mil a mais do que os herdeiros da centro-esquerda tradicional da antiga Concertação.

— Não podemos catalogá-los em termos de esquerda ou direita, são antiestablishment — afirmou Carlos Meléndez, sociólogo da Universidade Diego Portales, em Santiago. — Mas essas personalidades têm agora o mesmo desafio para se articular que os políticos tradicionais. Como vão se sintonizar é uma incerteza.

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O primeiro mês da Constituinte, dedicado à regulamentação do processo, incluindo a decisiva escolha de um nome para a presidência do órgão, dará uma ideia da capacidade de organização dos eleitos. Um de seus desafios será estabelecer mecanismos consultivos  à sociedade civil:

— A ideia é que sejam gerados mecanismos que escutem as pessoas. Os resultados em todas as eleições deixam clara a emergência de novas forças, às quais o sistema não conseguia responder. Está evidente que é fundamental a participação da sociedade — afirmou Beatriz Roque, pesquisadora de Ciência Política da Diego Portales.

O cientista político Gabriel Negretto, especialista em comparar processos constituintes, considera curto o prazo máximo de um ano para a redação da Carta, e “altamente improvável que todas as metas do processo constituinte sejam alcançadas, porque é extremamente difícil forjar um consenso inclusivo entre os representantes e promover uma participação cidadã mais ou menos efetiva e intensa” nesse prazo. Ele é crítico do atual estado da discussão na sociedade chilena.

— Há uma crença generalizada de que a incorporação de novos direitos os tornaria aplicáveis, mas é preciso detalhar quais direitos serão garantidos e quais serão os meios jurídicos, administrativos e judiciais para sua efetiva realização — afirmou.

Por não ter alcançado um terço dos deputados, a direita, que até agora conseguiu bloquear reformas sobre os parâmetros básicos do modelo econômico, provavelmente estará disposta a negociar mais do que antecipava, de modo a conseguir formar acordos:

— A primeira coisa que a direita deverá fazer é buscar acordos com  independentes, atrás de certas convergências ideológicas ou programáticas. Em um cenário de grande fragmentação, será necessário fazer pactos  — afirmou Stéphanie Alenda, socióloga política da Universidade Andrés Bello, acrescentando que o resultado eleitoral foi “coerente com as demandas dos protestos”. — A direita deverá discutir cada nova norma, de acordo com seus méritos, com posições variáveis

O cientista político Juan Pablo Luna, da Universidade Católica, afirma que a convenção é formada por “uma boa mescla de distintos setores, bem mais representativa da diversidade do país e com mais legitimidade do que o Congresso atual”. Ainda assim, diz que são forças muito fragmentadas e diversas, “que não se somam”.

— São grupos muito heterogêneos,com muita rivalidade. Podem chegar a coalizões em assuntos específicos como meio ambiente, gênero e povos originários, mas talvez isso não se traduza em alinhamentos em outros temas.

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Gabriel Negretto diz que não se deve esperar uma Carta mínima, como chegou-se a cogitar.

— Ao contrário, é mais provável que a nova Constituição seja muito mais extensa que a atual, refletindo a necessidade de atender às demandas dos diversos setores que irão  formar as coalizões reformistas e cujas preferências não serão inteiramente homogêneas — disse.