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Artigo: Biden vê na crise da Ucrânia uma oportunidade para construir consensos internos nos Estados Unidos

No discurso sobre o Estado da União, presidente tentou construir uma agenda que conseguisse unir republicanos e democratas em aplausos quando se referiu ao confronto com a Rússia
Presidente Joe Biden é aplaudido pela sua vice Kamala Harris e pela presidente da Câmara dos Deputados Nancy Pelosi durante seu discurso sobre o Estado da União Foto: Saul Loeb / AFP
Presidente Joe Biden é aplaudido pela sua vice Kamala Harris e pela presidente da Câmara dos Deputados Nancy Pelosi durante seu discurso sobre o Estado da União Foto: Saul Loeb / AFP

O discurso sobre o Estado da União feito pelo presidente dos Estados Unidos é uma tradição que ajuda a demonstrar a condição atual do país e a pontuar projetos e expectativas. Joe Biden, nesse sentido, há algumas semanas, deve ter planejado apresentar em sua fala destaques relacionados à economia do país, ao combate à inflação e à competição com a China — a Rússia provavelmente surgiria de alguma forma, mas não como destaque primordial.

A invasão russa ao território ucraniano certamente mudara a narrativa inicialmente proposta e obrigara os responsáveis pelo discurso do presidente a se adequarem ao novo cenário internacional. O foco dos 20 minutos iniciais em seu pronunciamento sobre o Estado da União, ocorrido na terça-feira, foi direcionado unicamente para a crise na Ucrânia, sobre o que já havia ocorrido até então e quais seriam os planos dos Estados Unidos dali para frente.

O uso de formações discursivas que ressaltam a lógica binária de “eu/outro” é comum em discursos do tipo e esteve presente de uma forma ou outra em todos os discursos de ex-presidentes americanos. Biden não fugiu à regra e reforçou a ideia de que o conflito atual deve ser entendido sob a lógica da luta pela liberdade em detrimento do “outro” tirano, ditador e agressivo — isso já alertou para o tom mais duro que o normal do presidente americano. Foi uma fala recheada de maniqueísmos e frequentes contraposições entre a “liberdade versus a tirania” e a “luz versus as trevas”. Também chamou a atenção no foco dado ao líder russo. Biden se referia exclusivamente a Vladimir Putin, pelo nome, em uma clara tentativa de promover uma personificação da guerra.

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Joe Biden voltou a repetir que o ataque à Ucrânia foi premeditado e sem justificativa e acusou os russos de disseminarem mentiras. Reforçou a necessidade de manter e expandir sanções econômicas e de aumentar a zona de exclusão aérea contra os russos. Isso vai de encontro ao que ele apontou em momentos anteriores, quando defendeu uma ação coordenada dos Estados Unidos e aliados para que a economia russa seja estrangulada e que Putin fique sem alternativas a não ser recuar. De fato, as sanções começaram a fazer efeito, principalmente aquelas relacionadas à exclusão do Banco Central do sistema financeiro internacional — o rublo derreteu e a previsão é a de que só piore o cenário macroeconômico na Rússia.

Essas ações só foram possíveis graças à capacidade de articulação dos países europeus e outros como Japão e Austrália, além dos Estados Unidos. Biden sabe que as sanções afetam muito a economia russa, o preço da energia e do frete, além de outros insumos. Por isso, precisava de uma campanha conjunta em que os custos fossem efetivamente compartilhados. Não se via tamanha coordenação entre americanos e europeus há algum tempo, até porque Donald Trump fez questão de isolar seu país enquanto presidente. Putin talvez não esperasse que a resposta viesse de forma tão coesa entre aliados. Aliados esses que batiam cabeça quanto ao papel da Otan — a aliança militar ocidental liderada pelos EUA — e o custo para seus membros. Assim, em um possível cálculo mal feito, Putin pode ter forçado tal aliança a restabelecer seus objetivos e incentivar maior aproximação frente a um inimigo comum.

De acordo com o presidente, a ação americana seguirá pautada por oferecer ajuda humanitária e por implementar restrições que permitam tornar as volumosas reservas internacionais da Rússia inúteis. Biden fez questão de reforçar ainda que os Estados Unidos não enviarão tropas ao território ucraniano e que a sua ajuda se dará por meio da Otan no sentido de garantir a soberania e a integridade física de seus membros e parceiros. Ou seja, se Putin estabeleceu uma linha vermelha para a Otan ao colocar armas nucleares de prontidão em seu território , o mesmo foi feito pelos ocidentais — o conflito se restringe à Ucrânia e qualquer tentativa de transbordamento para os vizinhos parceiros da aliança militar resultarão em resposta militar. Com isso, os limites de ambos os lados são claros.

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Porém, na guerra, o lado que ataca precisa atuar rapidamente. Os países da Otan levam isso em conta e buscam atrasar a ofensiva russa aumentando o custo de sua presença no território ucraniano. Ao imaginar uma guerra rápida com uma possível capitulação do regime atual, Putin planejou um custo menor do que o atual. Por isso, quando Biden e seus parceiros investem nas sanções, o fazem também para dificultar a capacidade russa de manutenção e deslocamento de suas tropas. Dessa forma, ao afirmar que “Putin não tem ideia do que vem pela frente”, o presidente americano provavelmente aponta para novas sanções e para um isolamento paulatino do país. Exemplo disso é a criação de força-tarefa que enviará esforços para congelar e confiscar bens dos chamados “oligarcas” russos, magnatas que têm recursos financeiros espalhados pelo continente europeu e que serão alvo da perseguição dos Estados Unidos e de seus aliados. Esse grupo de indivíduos, ao ser perseguido, pode aumentar a pressão por uma solução mais rápida — assim como pode aumentar a pressão da população e demais grupos por uma solução do conflito.

Outro aspecto que chamou atenção foi a preocupação com a inflação, que hoje causa espanto nos americanos e tem sido motivo de críticas ao presidente Biden, especialmente por republicanos. O aumento da inflação nos Estados Unidos pode parecer algo exclusivamente doméstico, ligado à economia. Mas Biden conseguiu trazê-lo para o debate no contexto do conflito na Ucrânia; ele sabe que com a diminuição da oferta de gás e petróleo, os preços dessas comodities aumentam e isso gera maior pressão inflacionária. Por essa razão, Biden fez questão de apontar que seu governo, junto de países aliados, fornecerá esses recursos a fim de controlar o aumento de preços e diminuir o impacto para a sociedade americana. Chegou a falar, inclusive, que o uso dessas reservas poderia ser usado mais vezes se necessário.

O presidente americano, ao contrário de outros pronunciamentos, pareceu mais firme e resoluto. Aproveitou para anunciar, no caso da crise na Ucrânia, o fechamento do espaço aéreo para aviões russos. Tentou abordar mais temas de consenso bipartidário e construir uma agenda que conseguisse unir republicanos e democratas em aplausos quando se referiu ao confronto com a Rússia. Talvez, em geral, tenha pecado pelo exagero, com o estabelecimento de expectativas demasiadamente elevadas e promessas que muito possivelmente não conseguirá cumprir. No que se refere à Ucrânia, em particular, parece ter deixado o púlpito em melhores condições do que quando chegou nele.

* Lucas Leite é doutor em Relações Internacionais, professor da FAAP e pesquisador do INCT/INEU. Fernanda Magnotta é doutora em Relações Internacionais, coordenadora da FAAP e senior fellow do Cebri