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Artigo: O Chile abre uma janela para o futuro

Constituinte paritária é eleita quando pandemia escancara desigualdades que persistem entre homens e mulheres
Propaganda de candidatas à Constituinte na comuna de El Bosque, em Santiago; mulheres serão ao menos 40% das redatoras da nova Carta Foto: MARTIN BERNETTI / AFP
Propaganda de candidatas à Constituinte na comuna de El Bosque, em Santiago; mulheres serão ao menos 40% das redatoras da nova Carta Foto: MARTIN BERNETTI / AFP

A Constituição de 1988, documento mais importante da democracia brasileira, foi elaborada por uma Assembleia Constituinte composta 95% por homens. É absolutamente frustrante que, mais de 50 anos depois do estabelecimento do voto feminino, fossem ainda os homens os responsáveis por redigir o grande pacto político da nossa democracia.

Mesmo com esse dado espantoso, a Constituinte conseguiu garantir, graças a um lobby ativo e aguerrido das mulheres, a igualdade formal entre homens e mulheres.

Mas há que se reconhecer que se tratou de um processo no qual os homens negociaram quais direitos seriam reconhecidos para as mulheres. E isso não é o mesmo que homens e mulheres negociarem em pé de igualdade quais as visões de mundo serão incorporadas em uma Constituição.

Este ano, o Chile vai por outro caminho. Elege neste fim de semana uma Assembleia Constituinte com paridade de gênero . As regras eleitorais exigem que a Assembleia tenha, no mínimo, 40% de mulheres em sua composição. As mulheres terão papel de igualdade na definição da nova Constituição.

Isso não é pouca coisa. A pandemia acelerou um debate fundamental sobre a real divisão de trabalho entre homens e mulheres. Não apenas, como se sabe, homens ganham 20% a mais que mulheres na América Latina, mas as mulheres exercem — e isso ficou ainda mais presente no contexto pandêmico, com escolas fechadas — mais horas de trabalho não remunerado e têm a situação de emprego mais precária do que os homens. A discussão sobre como incorporar a economia do cuidado, remunerando adequadamente as pessoas — que são principalmente mulheres — que sustentam essas atividades em nossa sociedade, será feita sob outra perspectiva em uma Assembleia com paridade de gênero.

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Esse é apenas um dos temas. A nova Constituição do Chile vai enterrar de vez o entulho normativo da era Pinochet e abrir a possibilidade de novo pacto político para a sociedade chilena. E realizar um pacto político em 2021 permite enfrentar com seriedade os desafios do nosso tempo.

A Constituição terá a possibilidade de adotar uma perspectiva de justiça climática, ou seja, de pensar como o Chile se adapta às mudanças climáticas e como contribuem para a mitigação de seus efeitos, repensando sua estrutura econômica para torná-la mais inclusiva.

Devem ser confrontados os desafios das novas modalidades de empregos informais (aplicativos) bem como situações de informalidade que toda a América Latina enfrenta (trabalho doméstico). É necessário abordar ainda os direitos dos povos indígenas e justiça racial; inovações na participação social; inclusão digital como direito fundamental; proteção à privacidade na era dos gigantes da internet e outros temas atuais.

O Chile tem uma grande oportunidade pela frente. E para nós, brasileiros, a importância do processo chileno é a de abrir as portas para um debate político sério sobre os temas atuais mais urgentes e complexos no nosso país e, claro, em nossa região. Que o debate do outro lado da cordilheira nos inspire a olhar com esperança para o nosso futuro.

*Pedro Abramovay é diretor para América Latina e Caribe da Open Society Foundations