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Mundo Política Externa

Carlos França busca desfazer legado negativo de Ernesto Araújo no Itamaraty

Chanceler reverteu apoio brasileiro a embargo americano a Cuba, cultiva boas relações com embaixador da China e investe em diplomacia da vacina; analistas destacam mudança na linguagem diplomática, mas veem dificuldade em mudar imagem do Brasil com Bolsonaro no poder
O chanceler Carlos França depondo ao Senado: desafio de reconstruir pontes dinamitadas por seu antecessor no Itamaraty, Ernesto Araújo Foto: Leopoldo Silva / Agência Senado
O chanceler Carlos França depondo ao Senado: desafio de reconstruir pontes dinamitadas por seu antecessor no Itamaraty, Ernesto Araújo Foto: Leopoldo Silva / Agência Senado

BRASÍLIA — A política externa brasileira mudou com a troca de chanceler, apesar das limitações impostas pelo presidente Jair Bolsonaro. Carlos França já deixa sua marca em vários movimentos feitos desde o início de sua gestão em abril. Pessoas próximas ao chanceler afirmam que ele planeja reconstruir pontes dinamitadas por seu antecessor, Ernesto Araújo. Seu grande objetivo é resgatar a imagem do Brasil no exterior, bastante abalada sob diversos pontos de vista, principalmente nas áreas ambiental e de direitos humanos.

O movimento mais recente foi feito no fim de junho. Pela 29ª vez, a ONU condenou o embargo americano imposto a Cuba. O Brasil se absteve , ou seja, retirou o apoio dado às sanções em 2019, quando a diplomacia brasileira se aliou de forma inédita aos Estados Unidos e a Israel na questão.

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Engolindo sapos

Novas mudanças de percurso não serão surpresa, pois a expectativa é de que o Brasil recorra à abstenção em outros temas. Por exemplo, em 2019, sob o comando de Ernesto, o governo brasileiro acompanhou a posição de países da maioria islâmica, boa parte deles com governos autoritários, em votações sobre direitos sexuais e das mulheres no mais importante órgão de direitos humanos da ONU. Segundo uma fonte da área diplomática, o Brasil tende a adotar uma postura mais discreta.

França tem que engolir alguns sapos enviados por Bolsonaro, como a indicação do bispo da Universal Marcelo Crivella como embaixador na África do Sul num momento em que a igreja é acusada de crimes e irregularidades no continente africano . Também precisa aceitar a total falta de interlocução com o governo do venezuelano Nicolás Maduro. Mas o chanceler é visto como um fator de moderação na política externa, papel antes exercido pelos militares.

Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington e atual presidente do conselho de comércio exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), respalda essa avaliação. Segundo ele, a área militar se posicionou contra uma intervenção armada na Venezuela, no início do governo Bolsonaro; evitou que o Brasil deixasse o Acordo de Paris; e foi importante para segurar, ou ao menos retardar, a mudança da embaixada brasileira em Israel de Tev Aviv para Jerusalém.

França mantém boas relações com o embaixador da China, Yang Wanming — que era desafeto de Ernesto, por causa dos bate-bocas públicos com o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, que também já dirigiu ataques aos chineses. O chanceler tenta manter um canal de diálogo com Pequim para evitar interrupções no fornecimento de insumos e vacinas contra a Covid-19. Recentemente, mandou uma carta ao governo chinês destacando a “relação fraterna” entre os dois países.

França criou a diplomacia da vacina e pôs o combate à pandemia como uma de suas prioridades, junto com o meio ambiente e a recuperação da economia. Tenta convencer o ministro da Economia, Paulo Guedes, a liberar mais dinheiro para o Itamaraty, o que agrada aos servidores do órgão.

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Fortalecer o Mercosul

Ele demonstra grande interesse em estar à frente das negociações sobre o aquecimento global, defende a integração regional e o fortalecimento do Mercosul, que hoje enfrenta uma de suas piores crises devido a divergências em torno de uma reforma defendida por Brasil e Uruguai cujo fim é liberar negociações comerciais em separado dos demais sócios com terceiros mercados.

O chanceler é, ainda, bastante próximo do secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Flávio Rocha, que chegou a ser cotado para assumir o Itamaraty no lugar de Ernesto. Os dois se conhecem desde 2012, quando se tornaram amigos.

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Guilherme Casarões, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas, chama a atenção para ausência de termos como “regeneração do Ocidente” e “salvação espiritual”, que deixaram de fazer parte da narrativa diplomática. Cita, ainda, a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), braço de estudos e debates do Itamaraty que, segundo queixas de colegas e críticos do governo, acabou se transformando em reduto de olavistas e influenciadores digitais de extrema direita na pandemia de Covid-19. A Funag, antes aparelhada pelo olavismo, agora passa a abordar temas contemporâneos.

— O Brasil deixa de ser negacionista ambiental e sanitário e passa a abraçar esses temas nas relações com outros países — disse Casarões, que não considera que haja uma ruptura ou um choque diplomático, mas uma mudança gradativa.

Exilado no arquivo

Único embaixador da ativa que fala abertamente contra o governo Bolsonaro e, por isso, está praticamente sem função no arquivo do Itamaraty, Paulo Roberto Almeida trabalhou com França nos EUA, na época em que Barbosa chefiava o posto na capital americana. Para ele, o chanceler demonstra firmeza, sem confrontação. E destaca que, além de Rocha, França tem como alicerce importante seu secretário-geral, Simas Magalhães.

— França tem consertado muitas coisas, e um desafio é reconstruir consulados brasileiros fechados, como ocorreu na Venezuela, e retomar as boas relações com França, Alemanha e Noruega. Ele é habilidoso — disse Almeida.

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Juliano Cortinhas, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, avalia que França tem posições mais pragmáticas, mas, por outro lado, é alguém que faz parte do governo Bolsonaro.

— Enquanto não mudar o presidente e o próprio governo, dificilmente vamos conseguir reconquistar uma imagem positiva no mundo — afirmou Cortinhas.