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Carnaval acelerou contágio em Nova Orleans, onde infecção por coronavírus cresce com mais força nos EUA

Primeiros casos da Covid-19 foram detectados após Mardi Gras; Louisiana pede ajuda  do governo federal
Bourbon Street, tradicional rua de New Orleans, deserta em meio à pandemia de coronavírus Foto: WILLIAM WIDMER / NYT
Bourbon Street, tradicional rua de New Orleans, deserta em meio à pandemia de coronavírus Foto: WILLIAM WIDMER / NYT

NOVA ORLEANS — No início do mês, Yanti Turang, uma enfermeira da ala de emergência de um hospital de Nova Orleans, no estado americano da Louisiana, usou todo o traje de segurança para atender uma mulher que tinha sintomas de gripe e havia voltado recentemente de uma viagem com escala na Coreia do Sul. A paciente foi levada imediatamente para o isolamento. Por volta do mesmo horário, um homem que nunca tinha saído do país e que havia ficado em Nova Orleans durante toda temporada do Mardi Gras — o carnaval da cidade, conhecido como Terça-feira Gorda, que tinha recém terminado —, apareceu na emergência com febre alta e tosse seca. Ele foi colocado em um leito comum e recebeu tratamento da equipe médica sem nenhum equipamento especial.

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O exame da mulher que havia viajado recentemente para a Ásia foi positivo para gripe comum. Mas o do homem não. Os sintomas que sentia estavam suavizando, mas o diagnóstico tinha sido inconclusivo. Então, foi orientado a tomar paracetamol, ficar de repouso e voltar para casa, na cidade. Nos dias seguintes, o primeiro caso do novo coronavírus foi confirmado na Louisiana — uma outra pessoa, em outro hospital.

Segundo um estudo, Louisiana tem um dos aumentos mais rápidos no número de casos da doença no mundo. O governador do estado, John Bel Edwards , disse, na última terça-feira, que a curva de crescimento do vírus no estado é similar às da Itália e da Espanha — os países mais afetados pelo novo coronavírus. Na mesma semana, o presidente dos EUA, Donald Trump , aprovou um pedido do governador para liberar uma lei em casos de desastres, que desbloqueia fundos federais de reserva para combater a pandemia. O número de mortos no país passa de mil, segundo anunciado nesta quinta-feira.

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Nova Orleans e seus arredores foram particularmente atingidos pelo surto: a cidade confirmou 827 casos da doença na noite da última quarta-feira — mais do que o total de casos em grande parte dos estados americanos. Hospitais locais ficaram lotados e equipamentos de  proteção começaram a faltar. A cidade Orleans Parish, que faz fronteira com Nova Orleans, registrou o maior número de mortes per capita do que qualquer outro município do país. Das 37 mortes — número quase três vezes maior do que o do condado de Los Angeles —, 11 foram na mesma clínica de repouso para idosos, onde dezenas de residentes foram infectados.

Edwards, que, assim como a maioria dos governadores que passaram pela Louisiana, tem uma extensa experiência para lidar com furacões, disse que desta vez o estado está lutando para enfrentar um novo tipo de desastre.

— Nós não temos um manual para o que estamos vivendo agora — disse Edwards. — Se há enchentes ou um furacão, é apenas uma pequena parte do país que é afetada e você recebe  muita ajuda dos estados vizinhos. Isso não é possível agora porque está acontecendo em todo o país.

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Comparações com 1918

A médica Cathernie O'Neal, especialista em doenças infecciosas e diretora do Centro Médico Regional Nossa Senhora do Lago, em Baton Rouge, comparou o último Mardi Gras com o infame desfile de "Liberty Loan", em 1918, na Filadélfia. O evento aconteceu em meio à pandemia da Gripe Espanhola e reuniu mais de 200 mil pessoas nas ruas da cidade, o que pode der contribuído para as 12 mil mortes registradas depois, num período de seis semanas.

Porém, O'Neal não culpa ninguém por não ter limitado as festividades do carnaval por causa do novo coronavírus. Na época, nenhum caso da doença  tinha sido confirmado na Louisiana, e havia menos de 50 em todo os Estados Unidos.

— Nós ainda estávamos falando sobre lavar as mãos —  contou a médica.

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A epidemiologista Susan Hassig, professora na Escola de Saúde Pública e Medicina Tropical da Universidade Tulane, afirma que há outros motivos, além da Mardi Gras, que podem explicar porque Nova Orleans foi tão afetada pela pandemia  — a densa e compacta geografia da cidade;  o turismo; o porto, onde atracam barcos do mundo inteiro; e a afetividade cultural da população.

— Todo mundo fala com todo mundo, o que quer dizer que você para e conversa com alguém, depois anda mais um pouco e conversa com outra pessoa  — explica Hassig, que participou do Krewe of Muses, um desfile típico da Mardi Gras.

A enfermeira Turang, que trabalhou em Serra Leoa durante a epidemia da Ebola, em 2015, disse que equipes médicas estão entrando em contato com pacientes que foram aos hospitais no período entre o Mardi Gras e o primeiro anúncio de Covid-19 no estado, em 9 de março, com sintomas parecidos com os da gripe, mas cujo resultado havia sido inconclusivo.

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Proliferação no Sul

O primeiro caso confirmado da doença foi anunciado cerca de duas semanas depois da Terça-feira Gorda. Por volta desse mesmo período, relatos começaram a surgir no Sul  — Tennessee, Arkansas, Texas  — de pessoas que cujos exames deram positivo para o novo coronavírus e que tinham voltado recentemente de Nova Orleans. As primeiras pessoas diagnosticadas com Covid-19, segundo a secretária de Saúde da cidade, Jennifer Avegno, não tinham viajado recentemente para fora, e a variedade dos sintomas apresentados confundiram os médicos.

— Havia apenas uma ideia de que algo não estava certo. Logo ficou claro que estava se espalhando rapidamente e que os casos não estavam diretamente ligados —  explicou Avegno.

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Em dias, escolas estaduais estavam fechadas e grandes aglomerações foram proibidas em Nova Orleans — como o tradicional desfile do Dia de São Patrício, que acontece todos os anos. Porém, desta vez, o evento reuniu pessoas suficientes para que a polícia tivesse que intervir e dissolver a multidão. Uma semana depois que o primeiro caso foi anunciado, o governador expediu uma ordem para fechar bares e restaurantes, e alguns precisaram instalar fechaduras nas portas que não se fechavam há anos.

À medida que os testes aumentavam, o número de casos na Louisiana aumentou. A curva de contaminação da doença foi a mais acentuada do mundo em comparação com outras áreas nas duas semanas que se seguiram após o primeiro diagnóstico, segundo um estudo recente de Gary A. Wagner, professor de economia da Universidade da Louisiana em Lafayette. Em uma cidade pequena e apertada como Nova Orleans, isso significa que quase todo mundo conhece alguém que foi infectado.

Escassez de equipamentos

Médicos e enfermeiros dos hospitais da cidade, assim como os do resto do país, relatam uma escassez crítica de equipamentos de proteção. O Exército de Cajun, uma das brigadas de voluntários da Louisiana, famosas por resgatar pessoas das enchentes no estado, entregou várias caixas de máscaras e galões de álcool em gel para as equipes médicas. Mas o número de pacientes continua aumentando.

O governador Edward, um democrata moderado em seu segundo mandato, sempre foi cuidadoso ao criticar o governo de Trump por motivos políticos e práticos: depois de um furacão, há pouco uso em brigar com o governo federal que pode ajudar a aliviar os impactos do desastre. Na quinta-feira, porém, Edwards afirmou que gostaria de ver a gestão de Trump mais envolvida no combate ao novo coronavírus de forma que se priorize as áreas mais atingidas.

—  Respiradores e equipamentos de proteção individual devem ser alocados com base nas necessidades que existem, diferentemente da situação atual, em que todos os estados, todos os prestadores de serviços de saúde estão trabalhando da melhor maneira possível, mas independentes um do outro — declarou.

Consequências econômicas

À medida que a doença se espalha e adoece quem luta contra ela, uma das maiores preocupações é uma possível falta de profissionais de saúde, principalmente enfermeiras e terapeutas respiratórios. Por enquanto, muitos dos expostos ao vírus — que representam mais da metade dos técnicos de emergência da cidade —  estão usando máscaras e verificando suas temperaturas, mas, desde que não apresentem sintomas, permanecem no trabalho.

Há ainda as consequências da pandemia — devastação econômica para uma cidade que vive do turismo e do lazer. A maioria dos empregos em hotéis e restaurantes da cidade não paga o suficiente para que os trabalhadores façam reservas para pararem durante semanas de isolamento, mas, ainda assim, é melhor do que nada.

— Nossos bancos de alimentos vão ficar sem comida na próxima semana — declarou a prefeita de Nova Orleans, LaToya Cantrell,  acrescentando que a cidade estava estimando um déficit orçamentário de pelo menos US$ 100 milhões no próximo ano, dada a perda de receita com impostos sobre vendas.
— E ainda temos uma temporada de furacões previstas para junho — completou.

Em seu pedido para declaração de emergência federal, o governador Edwards disse que a previsão de internações excederia a capacidade do estado até 4 de abril e que o Louisiana havia começado a "construir hotéis" para fornecer leitos hospitalares adicionais. Três parques estaduais também foram equipados com reboques para abrigar mais de 300 pacientes.

Se os hospitais atingirem a capacidade, as autoridades estaduais estão considerando alojar pacientes não críticos no Centro de Convenções Ernest N. Morial de Nova Orleans, que abrigava milhares de residentes que foram expulsos de suas casas pelas águas do Katrina e se tornou um símbolo da resposta caótica a esse desastre.