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China sai da defensiva e reivindica liderança global contra coronavírus

Após uma mobilização em massa que incluiu a maior quarentena da História, país busca usar controle da epidemia como uma arma de soft power
Médicos chineses desembarcam na Itália vindos de Xangai para ajudar a combater a epidemia de Covid-19 no país Foto: STRINGER / AFP
Médicos chineses desembarcam na Itália vindos de Xangai para ajudar a combater a epidemia de Covid-19 no país Foto: STRINGER / AFP

ZURIQUE - Enquanto o mundo toma medidas sem precedentes para frear a propagação do coronavírus, a sensação na China é de que o pior já passou. Após uma mobilização em massa comandada pelo Partido Comunista, que incluiu a maior quarentena da História, o país onde surgiram os primeiros casos da Covid-19 anunciou na semana passada o fim do pico de infecções. Quase ao mesmo tempo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretava que o surto se tornara uma pandemia.

A mudança de foco deu combustível para o tom triunfalista que já se esboçava na mídia chinesa, controlada pelo regime. De uma posição defensiva no início da crise, quando foi acusado de piorar a situação ao ocultar o problema, o governo chinês passou ao ataque, tentando limpar a imagem do país e promover seu modelo de gestão autoritária como o mais eficiente para enfrentar emergências.

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A epidemia que surgiu na cidade de Wuhan na virada do ano tornou-se o maior desafio enfrentado pelo PC chinês desde os protestos estudantis da Praça da Paz Celestial, em 1989, mas o discurso oficial conta outra história, na qual o presidente Xi Jinping é o “comandante da guerra popular” na vitória contra o vírus. A narrativa de que a China virou o jogo passou a ser usada para estimular o espírito nacionalista dentro do país e, no exterior, refletir a imagem de potência global capaz de dar lições ao mundo.

De volta à Guerra Fria

No início deste mês, já estava pronto um livro do departamento de propaganda do PC que exalta o sucesso do governo na guerra contra o vírus — “Batalha contra a epidemia”. O lançamento acabou cancelado, indicando que talvez fosse cedo demais para publicar uma história que ainda parece longe do fim. A narrativa heroica, porém, continuou na mídia estatal, que passou a atacar países que adotaram medidas contra a China, especialmente seu maior adversário, os EUA. A rivalidade entre as duas maiores economias do mundo ganhou um novo palco com o coronavírus.

A linha é de exaltação nacionalista e críticas a falhas na contenção da Covid-19 em países do Ocidente, mesmo depois de ganharem tempo para se prepararem graças às medidas na China. Na agência Xinhua, um artigo exigiu o agradecimento do mundo à China, que “sozinha, com sua própria força, barrou decididamente a epidemia”.

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O emprego da saúde pública como veículo da ideologia oficial não é novidade na China comunista. A historiadora Zhou Xun lembra que essa diretriz, iniciada sob a liderança de Mao Tsé-tung, servia tanto no plano doméstico, como no caso dos “médicos descalços” que erradicaram doenças, como no internacional, com o envio de médicos chineses a 40 países africanos.

O que impressiona na atual crise é a rapidez com que a China se vê em condições de sair da defensiva como pária mundial para reivindicar a liderança no combate ao vírus. Um avião com suprimentos médicos e profissionais de saúde chineses foi enviado à Itália, e o bilionário chinês Jack Ma, dono do site de comércio eletrônico Alibaba, doou 500 mil kits de testes e um milhão de máscaras aos EUA, enquanto Xi Jinping conclama líderes mundiais a coordenar os esforços.

A mutação do surto detectado em Wuhan para uma pandemia “é uma oportunidade perfeita” para o PC exercer seu “poder brando” com ajuda a outros países e reafirmar seu status de potência global, disse ao GLOBO a historiadora Zhou, nascida na província chinesa de Sichuan e pesquisadora da Universidade de Essex, no Reino Unido. Ao apresentar o combate à epidemia como uma “cruzada moral” empreendida pelo povo chinês, o governo deixa de lado os danos iniciais causados pela falta de transparência e se concentra em condenar “o horror” que ocorre fora da China.

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— É como se estivéssemos de volta à Guerra Fria. O objetivo é mostrar que o modelo chinês é bem-sucedido.

Com a mudança do epicentro da epidemia para a Europa, a pressão voltou-se para países democráticos, com críticas à relutância em tomar medidas adequadas e uma reinterpretação dos limites da interferência estatal na vida privada. Medidas de monitoramento individual em massa, que em tempos normais seriam consideradas violação de privacidade, foram adotadas em democracias como Israel e Taiwan. “Guerra ao vírus”, o slogan de Xi, passou a ser ouvido em outros países, embora na Ásia democracias como a Coreia do Sul tenham tido sucesso em frear a epidemia sem recorrer a medidas draconianas.

Em busca de legitimidade

Propaganda à parte, o fato é que os números divulgados mostram que a resposta drástica deu resultado em conter a escalada da epidemia na China. Se essa é a prioridade da maioria dos governos hoje, vale olhar as medidas adotadas sem descartá-las por terem sido aplicadas por um regime autoritário, sugere em artigo no New York Times o jornalista Ian Johnson, que vive em Pequim há duas décadas. Afinal, diz ele, “os líderes chineses podem não encarar eleitores, mas eles também se importam com legitimidade, e ela depende do seu desempenho”.

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Uma das maiores preocupações é a retomada da atividade econômica, que despencou desde o início da crise: nos dois primeiros meses do ano, a produção industrial teve a maior contração já registrada, 13,5%.

Rigoroso na campanha contra rumores sobre o coronavírus, usada também para censurar vozes críticas, Pequim não vê problemas em promover teorias conspiratórias em seu contra-ataque internacional. Tornando pública uma suspeita que o país vinha levantando em reuniões no exterior, o diplomata Lijian Zhao disparou no Twitter que a Covid-19 “pode” ter sido levada a Wuhan por militares americanos. Para a historiadora Zhou, a acusação segue a mesma tática de desinformação usada na Guerra da Coreia, quando Pequim acusou os EUA de usarem armas biológicas.

Autora de um livro sobre o sistema de saúde na China maoista, Zhou põe em dúvida o sucesso de políticas autoritárias no setor, já que elas quase sempre têm “consequências indesejadas”. No caso da China sob a Covid-19, uma delas seria a falta de assistência a pacientes crônicos de outras doenças que tenham ficado sem atendimento durante o isolamento imposto pelo governo.

— Seria interessante saber quantas pessoas morreram como resultado de medidas autoritárias como o fechamento de cidades.