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Cobrança de enviado de Biden reflete ceticismo dos EUA com compromisso climático brasileiro

Demandas do governo americano incluem a antecipação, de 2060 para 2050, da meta de neutralizar todo o carbono emitido pelo Brasil, e a apresentação de um 'plano de voo' para implementação das metas
Representante da Casa Branca para o Clima, John Kerry, durante evento em Bangladesh Foto: REHMAN ASAD / AFP
Representante da Casa Branca para o Clima, John Kerry, durante evento em Bangladesh Foto: REHMAN ASAD / AFP

RIO e BRASÍLIA — Em meio a conversas entre altas autoridades dos governos do Brasil e dos Estados Unidos para tentar chegar a um entendimento bilateral sobre meio ambiente antes da Cúpula de Líderes sobre o Clima, o enviado da Casa Branca para o clima, John Kerry, cobrou ontem "ações imediatas" do presidente Jair Bolsonaro contra o desmatamento. Fontes que acompanham o diálogo bilateral afirmaram ao GLOBO que o recado, dado por meio de um tuíte, reflete o ceticismo que existe no governo americano sobre o real compromisso do Brasil com as mudanças prometidas.

Do lado do governo americano, a visão é de que os compromissos apresentados pelo Brasil até agora são antigos e insuficientes. Na mensagem, Kerry disse que o comprometimento do governo Bolsonaro — registrado em carta do brasileiro a Joe Biden — em cumprir a meta, assumida ainda no governo Dilma, de eliminar o desmatamento ilegal até 2030 é "importante", mas que ele espera ver os resultados.

"Esperamos ações imediatas e um engajamento com as populações indígenas e a sociedade civil para que este anúncio possa produzir resultados tangíveis", escreveu.

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Também ontem, 15 senadores democratas enviaram uma carta a Biden dizendo que a ajuda ao Brasil na área ambiental deve estar condicionada à redução do desmatamento e ao fim da impunidade para crimes ambientais e violência contra ativistas.

Em busca de acerto

As exigências de Kerry e do grupo de senadores democratas aconteceram um dia depois de o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ter afirmado, em entrevista ao GLOBO , que o Brasil já fez bastante nessa área e que "os outros é que precisam aumentar as suas ambições". A visão do governo Bolsonaro é de que o Brasil não pode aceitar ser o único país a ser cobrado com firmeza em matéria de proteção ambiental. Em palavras de uma fonte governamental, "se ninguém está cumprindo e ninguém vai atender os americanos, por que o Brasil é obrigado a fazê-lo?". A fonte se refere às dificuldades que Kerry tem enfrentado no comprometimento de países como Índia, China e Arábia Saudita, entre outros.

Representantes do governo Biden estão em contato com vários ministérios do governo brasileiro, entre eles Meio Ambiente, Economia e Agricultura. O diálogo flui, mas não está claro se será possível alcançar um entendimento no curto prazo. Segundo fontes, uma das demandas do governo Biden é de que o Brasil antecipe de 2060 para 2050 a meta de neutralizar todo o carbono emitido pelo país.

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Outra demanda seria a apresentação de um plano de voo, que defina prazos que possam, posteriormente, ser cobrados.

Bolsonaro disse, na carta a Biden, que o Brasil poderia antecipar o prazo de neutralização das emissões de carbono em dez anos, mas pede, em troca, ajuda econômica. O governo alega que, para isso, seriam necessários US$ 10 bilhões por ano, porque "o Brasil é um país pobre, em desenvolvimento", disse um integrante da equipe de Bolsonaro.

— O governo Biden quer ver o Brasil cumprir compromissos. Existe vontade de diálogo e de trabalhar em conjunto, esse é o único acordo que existe neste momento. É apenas o começo — afirma Daniel Wilkinson, diretor da Divisão de Meio Ambiente da ONG Human Rights Watch (HRW).

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Segundo ele, "tudo o que foi apresentado pelo Brasil até agora não é novo e não convenceu".

— Existe ceticismo. O que estão dizendo parece bom, mas não convence — frisou o diretor da HRW.

Resultado

A palavra-chave das negociações, coincidiram várias fontes, é resultado. Os EUA poderiam liberar financiamento para a proteção do meio ambiente no Brasil, mas nada será feito se o governo Bolsonaro não apresentar melhoras concretas. Existe, ainda, a preocupação pela falta de consenso dentro do Brasil. Essa impressão não é apenas dos americanos. Segundo uma fonte do governo brasileiro que participa das conversas, os britânicos também pensam assim. As divergências internas que fazem com que as conversas sejam com "vários Brasis" acabam atrapalhando as negociações em curso.

Essa mesma fonte disse que o governo alega uma grave crise fiscal para intensificar as ações contra a devastação da Floresta Amazônica e insiste em receber US$ 1 bilhão agora, para que sejam adotadas medidas para coibir o desmatamento por meio de fiscalização, punições e incentivos à economia da região.

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Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, afirma que a reunião de chefes de Estado, que acontecerá na próxima semana, seria uma oportunidade para o Brasil ganhar mais espaço e protagonismo internacional.

— Mas, infelizmente, o atual governo optou por outro caminho, e impôs ao país uma agenda antiambiental desastrosa, criticada em todo o mundo. Graças a Bolsonaro, passamos vergonha na agenda que deveríamos liderar — lamenta Astrini.

O pedido feito pelo Brasil de que outros países também cumpram seus compromissos em matéria ambiental, começando pelos Estados Unidos — o retrocesso no governo Trump foi expressivo —, foi considerado legítimo por fontes de ambos os lados que acompanham as conversas bilaterais.

O problema, disseram algumas dessas fontes, é que esse discurso parte de um presidente e um ministro com péssimas imagens internacionais. De fato, um dos temores que paira sobre o diálogo ainda embrionário entre os dois países é de que Bolsonaro ou Salles — ou ambos juntos — acabem torpedeando a possibilidade de um entendimento.