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Com cardeal no banco dos réus, Vaticano começa julgamento de caso milionário de crimes financeiros

Ponto central do caso é compra de prédio em distrito luxuoso de Londres, em 2014, que provocou grandes perdas à Santa Sé, de acordo com a denúncia
Cardeal Giovanni Angelo Becciu, durante evento público no Vaticano em 2018 Foto: ANDREAS SOLARO / AFP
Cardeal Giovanni Angelo Becciu, durante evento público no Vaticano em 2018 Foto: ANDREAS SOLARO / AFP

VATICANO — Começou nesta terça-feira um dos maiores julgamentos por crimes financeiros da história do Vaticano, que envolve um dos mais influentes cardeais da Santa Sé , além de outros nove réus e uma acusação milionária de desvio de dinheiro.

No centro do caso está a compra de um prédio de 17 mil metros quadrados de área interna em um distrito de alto padrão de Londres, uma operação ordenada em 2014  pelo cardeal Giovanni Angelo Becciu, à época o número dois da Secretaria de Estado do Vaticano e responsável pela administração do Óbolo de São Pedro, um fundo milionário composto por doações de fiéis.

Segundo a denúncia, Becciu usou recursos deste fundo para financiar a compra de 45% da propriedade londrina, ao custo inicial de 200 milhões de euros (R$ 1,22 bilhão). Ao todo, o Vaticano investiu (e perdeu) cerca de 350 milhões de euros (R$ 2,13 bilhões) no empreendimento, incluindo em comissões pagas a intermediários, alguns deles também no banco dos réus.

Com isso, Becciu se tornou alvo de cinco acusações de desvio de verbas, uma de abuso de poder e uma de induzir a testemunha a cometer perjúrio. Há ainda uma acusação de que ele priorizou empresas e organizações de caridade controladas por seus irmãos na Sardenha na hora de destinar recursos e contratos da Santa Sé. Um agravante é o fato do religioso ter tentado desmoralizar os investigadores em declarações à imprensa italiana.

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O cardeal, que foi demitido de suas funções na administração do Vaticano em 2020 e teve seus direitos cardinalícios suspensos, sempre se declarou inocente — à época do surgimento das primeiras denúncias, se disse “atordoado” e com dificuldades para lidar com o que considerou ser uma “situação surreal”.

Político hábil

Com ampla experiência em postos diplomáticos da Santa Sé, Becciu foi indicado por Bento XVI para a chefia de Assuntos Gerais no Secretariado de Estado, um posto comparado ao de um chefe de Gabinete em governos de outros países. Neste período, lidou com temas sensíveis, como a renúncia de Bento XVI e o conclave que escolheu Francisco, em 2013, além dos escândalos de abusos sexuais cometidos por sacerdotes. Seu bom trânsito nos altos escalões da Igreja Católica frequentemente o colocava entre os nomes cotados para suceder Francisco.

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Foi neste período também, segundo a denúncia, que ele começou a realizar negócios suspeitos utilizando seu prestígio dentro da cúria e o acesso aos fundos do Vaticano. Das 487 páginas da denúncia, 73 são dedicadas ao cardeal e seus negócios.

Os dois anos de investigação conduzidas pelos promotores também levaram ao banco dos réus o advogado suíço René Brulhart, que liderou o órgão responsável por monitorar operações financeiras do Vaticano, e seu então subordinado, Tomasso di Ruzza. Ainda aparecem na lista o monsenhor Mauro Carlino, ex-secretário pessoal de Becciu, Enrico Crasso, ex-gerente de investimentos do Vaticano, além de Gianluigi Torzi e Raffaele Mincione, corretores italianos baseados em Londres.

Outro nome de destaque na investigação foi o da italiana Cecilia Marogna, a quem Becciu teria repassado 600 mil euros (R$ 3,66 milhões) para realizar missões secretas a serviço da Santa Sé em locais de risco. Contudo, parte deste dinheiro acabou gasto em itens de luxo, incluindo bolsas da grife Prada — em entrevista a jornal espanhol El País, ela declarou que os gastos foram feitos com o dinheiro de seus honorários, e que “não é uma missionária nem trabalha de graça”.

Transparência

As primeiras audiências, realizadas nesta terça e amanhã, servirão para acertar detalhes preliminares do julgamento — depois, a expectativa é de que ele seja adiado até outubro, quando começarão os depoimentos. Não há um prazo estimado para o fim do julgamento, que ocorrerá nos Museus do Vaticano, mais amplos do que as salas usadas normalmente para processos na Santa Sé. A mudança de local reflete a preocupação com o número de testemunhas, advogados e jornalistas envolvidos, e há a necessidade de se manter as restrições relacionadas à Covid-19.

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Para o Vaticano, o processo também pode ajudar a melhorar a imagem da conduta financeira da Santa Sé — em entrevista ao site Vatican News, Juan Antonio Guerrero, chefe da Secretaria para a Economia, o julgamento mostra que os sistemas internos de controle funcionaram, uma vez que as acusações vieram do próprio Vaticano.

— Penso que o processo é um ponto de virada, que poderá trazer maior credibilidade à Santa Sé em termos financeiros — declarou Guerrero.

Na semana passada, o Vaticano divulgou, pela primeira vez, dados sobre suas propriedades ao redor do mundo: são cerca de 5 mil, incluindo 4.051 na Itália e 1.120 em outros países. O documento não menciona os orçamentos do Banco do Vaticano, da Cidade do Vaticano ou dos Museus do Vaticano.