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Coronavírus nos EUA: Uma ferida aberta em um titã econômico com uma rede social frágil

A magnitude e a velocidade da crise representam desafio real para governo americano, diante de um sistema de proteção pública mais flexível que o europeu
Workers clean the Brady Press Briefing Room prior to the daily coronavirus task force briefing at the White House in Washington, U.S., April 6, 2020. REUTERS/Kevin Lamarque Foto: KEVIN LAMARQUE / REUTERS
Workers clean the Brady Press Briefing Room prior to the daily coronavirus task force briefing at the White House in Washington, U.S., April 6, 2020. REUTERS/Kevin Lamarque Foto: KEVIN LAMARQUE / REUTERS

WASHINGTON - Na noite de 17 de junho de 1972, no sexto andar do prédio Watergate, na capital americana, a polícia prendeu cinco pessoas que invadiram os escritórios do Comitê Nacional Democrata, provocando um escândalo que custaria a Presidência a Richard Nixon. Nesta sexta-feira, em frente ao mesmo complexo de edifícios, atravessando um entroncamento de estrada tão vazio agora quanto os do resto da capital, cerca de 20  pessoas se reuniram no portão do restaurante social Miriam's Kitchen.  Um símbolo antigo, como tantos que se repetiram por duas semanas em todo o país, dos problemas colossais que outro presidente republicano enfrenta 48 anos depois.

O restaurante passou quatro décadas servindo refeições para os sem-teto da cidade.  Os clientes apóiam as caixas brancas com a comida na parede de pedra da igreja presbiteriana adjacente.  Alguns carregam sacolas ou carrinhos com seus poucos pertences. Outros, como Andy, que prefere não dar seu sobrenome, cabelos brancos, camisa azul, têm um teto para o qual voltar, mas não têm mais um emprego para pagar pela comida.

— Até a semana passada, eu era quem servia o jantar — explica ele. — Eu trabalhava em um restaurante, mas ele fechou, como todos.  Agora, serve apenas comida para viagem, e os dois proprietários e mais dois trabalhadores são suficientes.

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'Blecaute coordenado'

Andrew Hollenhorst, diretor da equipe de pesquisa econômica do Citigroup nos EUA, explica que "existem 12 milhões de pessoas que trabalhavam em restaurantes neste país, e a maioria está fechada ou serve apenas comida para viagem".

– Com apenas a metade restante na rua, há seis milhões de desempregados. O nível de deterioração é tremendo. A produção também sofre. Construção, vendas de carros.  Boa parte do Produto Interno Bruto foi essencialmente posta em atividade zero. É muito diferente de todas as crises anteriores. Não é um declínio orgânico. É um blecaute coordenado — explica.

Entre as duas últimas semanas de março, quase dez milhões de pessoas, 6% dos trabalhadores do país, solicitaram auxílio desemprego. Os cálculos prevêem que a cifra chegara a  15% nos próximos meses. Em fevereiro, a taxa de desemprego havia sido de 3,5%, a menor em 50 anos.

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Os Estados Unidos nunca experimentaram uma desaceleração como a causada pelo coronavírus. É o país com os mais casos confirmados de Covid-19 (mais de 350 mil) e o número de mortos, que multiplicou por seis na última semana, excede 10 mil. A projeção mais otimista da Casa Branca é que o vírus cobrará entre 100 mil e 240 mil vidas americanas. Isso desde que sejam respeitadas as ordens de confinamento, às quais 90% dos cidadãos já estão sujeitos. O Goldman Sachs calcula que as medidas de distanciamento social, necessárias para impedir a propagação do vírus, causarão uma contração de 34% no PIB no segundo trimestre em comparação ao trimestre anterior, em termos anualizados.

Isso acontece em um país que passa por um ciclo expansionista extraordinariamente longo. A economia dos Estados Unidos vinha crescendo continuamente por 10 anos, desde que deixou a Grande Recessão para trás. E de repente, uma parada repentina.

— A crise financeira global levou mais tempo para afetar a economia, e o fez de maneira semelhante às recessões e ciclos passados — explica Daniel Bachman, analista econômico para os Estados Unidos na Deloitte. — Muito disso era conhecido por estudiosos da história financeira. Essa recessão é diferente: o problema não se originou no sistema financeiro, nem mesmo em alguns setores como a energia.  Isso torna a velocidade de transmissão e a magnitude do impacto únicas — completa.

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A magnitude e a velocidade do impacto representam um desafio real para um país com uma rede de segurança social extremamente frágil. No meio da pandemia, muitos dos que perdem o emprego também ficam sem o seguro de saúde pago pelo empregador. Eles têm três opções: pagar cerca de US$ 20 mil por ano para manter seu seguro, gastar metade em franquias solicitando a cobertura conhecida como Obamacare ou juntar-se aos quase 30 milhões de cidadãos que não têm seguro de saúde. Um em cada 10 americanos atrasa ou evita uma visita ao médico, mesmo com sintomas, por razões financeiras. Um fato preocupante no meio de uma pandemia causada por um vírus transmitido por pacientes com pouco ou nenhum sintoma.

O Congresso lançou um pacote de primeiros socorros no valor de US$ 2,2 trilhões, o maior resgate econômico da História. O plano inclui envio em massa de cheques aos cidadãos, uma linha de empréstimo para pequenas e médias empresas e um fundo para indústrias, cidades e estados. Indubitavelmente, ajudará a compensar algumas das deficiências estruturais da proteção social. Porém, alguns críticos, como os economistas de Berkeley Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, consideram isso insuficiente e, em parte, errado. Ao contrário de outros países, os autores observaram em um artigo do New York Times, Washington optou por ajudar os desempregados em vez de proteger o emprego. Em vez de ajudar as empresas a pagar salários, os trabalhadores são demitidos, empurrados para o processo burocrático de solicitar benefícios e sentenciados a esperar em casa a recuperação da economia.

Como geralmente acontece nesses casos, o impacto da recessão econômica será maior para os mais desfavorecidos, contribuindo para aumentar a desigualdade econômica que explodiu nas últimas décadas: 23% dos trabalhadores americanos dizem que eles ou alguém de suas famílias foram demitidos após o surto de coronavírus, de acordo com uma pesquisa da Associated Press. A porcentagem sobe para 33% entre as famílias com renda inferior a US$ 50.000 por ano.

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Depois, há aqueles que foram incapazes de parar. Aqueles para quem respeitar as diretrizes do distanciamento social é um luxo além de seu alcance. De acordo com uma análise dos dados de geolocalização de telefonia móvel do Times, nas mesmas áreas metropolitanas, as famílias mais ricas limitaram seus movimentos muito mais do que as famílias mais pobres.

— Nossa comunidade latina continua trabalhando em alimentos, saúde e construção — explica Sindy Benavides, diretora da Liga dos Cidadãos Latino-Americanos Unidas (LULAC), a maior e mais antiga organização latina do país. — O país deve refletir sobre quem faz esses trabalhos essenciais, para que um dia todos possamos sair novamente. São aqueles que ainda estão na rua e, em muitos casos, sem cobertura médica. Existem 16,7 milhões de pessoas com um ente querido em sua casa que não têm status legal. Cinco milhões de crianças americanas vivem em lares onde pelo menos um dos pais não está legalizado. Pacotes de resgate futuros devem levar essa realidade em consideração — finaliza.

Esses trabalhadores são alguns dos que povoam as ruas de Washington, a cidade do poder político. E também Nova York, a capital das finanças. Los Angeles, do entretenimento. Miami, Chicago, Nova Orleans, Seattle, São Francisco. Outra peculiaridade dessa crise é que ela é desproporcionalmente cruel para as grandes cidades, que por sua vez constituem o núcleo da capacidade produtiva do país.

Âncoras

Os 50 distritos mais atingidos pelo coronavírus contribuem com 30% do emprego e 36% do PIB americano, de acordo com um estudo do professor Mark Muro, diretor de política metropolitana do Brookings Institute.

— O fascinante e perturbador é que os distritos mais atingidos são a âncora da economia do país — explica Muro por telefone. — Isso significa que, para reativar a economia, é necessário garantir que esses centros estejam prontos.

Muro sustenta que medidas futuras devem se concentrar nessas cidades. Isso constitui um desafio para um presidente, em meados do ano eleitoral, cuja base de votos está localizada precisamente nas áreas rurais e não nas áreas metropolitanas mais progressistas.

— É irônico, porque sua reeleição dependerá de como cidades como Nova York, Washington, Seattle ou Los Angeles se recuperem — diz Muro.

Apenas a um quilômetro a leste da Miriam's Kitchen e Watergate, na G Street, chega-se à Casa Branca. Lá dentro, na mesma tarde de sexta-feira, o presidente apareceu em sua entrevista coletiva diária sobre o coronavírus.  Outra imagem da história: os jornalistas, deixando lugares vazios entre si para respeitar as diretrizes de distanciamento, ouvem Donald Trump na sala de imprensa que ele desprezava durante seus primeiros três anos de Presidência.

O grande sucesso de Trump ao longo dos anos tem convencido uma parcela significativa dos americanos de que sua liderança protegeu a economia. A mensagem era sustentada por uma expansão econômica ininterrupta de uma década. A narrativa, é claro, tem suas fraquezas. Mas um bombardeio diário de tuítes em letras maiúsculas elogiando a economia e um aumento que parecia imparável nas bolsas de valores esmagavan qualquer nuance.

"O país está na sua melhor forma, os mercados estão na sua melhor forma", tuitou Trump há um mês, pouco antes de o inimigo microscópico driblar tudo o que esses mercados ganharam durante seu mandato.

O presidente resistiu a admitir o golpe, embora haja poucas dúvidas de que os americanos irão às urnas em novembro, em meio a uma grande crise econômica e uma das maiores taxas de desemprego já registradas.

Prêmio Nobel de Economia, Robert Shiller fala sobre o primeiro presidente que é "um palestrante motivacional". O efeito dos aplausos de Trump na confiança do consumidor é uma das forças por trás de um período recorde de crescimento econômico nos últimos três anos. A expansão deveu-se em parte a Barack Obama, admite o professor de Yale, mas o crédito por seu prolongamento pode ser atribuído a Trump. Resta ver o que acontece quando não há mais números para inspirar.