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Coronavírus reforça preconceito contra minorias religiosas e étnicas no mundo

Muitas vezes, discurso de ódio é destilado pelos próprios governantes, caso da Hungria, Estados Unidos e Índia.
Africanos são alvo de racismo no distrito de Guangzhou, capital da província de Guangdong, no sul da China Foto: FRED DUFOUR / AFP
Africanos são alvo de racismo no distrito de Guangzhou, capital da província de Guangdong, no sul da China Foto: FRED DUFOUR / AFP

RIO — No fim de fevereiro, a principal autoridade da ONU para os direitos humanos, Michelle Bachelet, pediu à comunidade global que demonstrasse mais solidariedade às pessoas de origem asiática sujeitas a casos cada vez mais frequentes de discriminação em meio ao surto do novo coronavírus , surgido  em Wuhan , na China. Diversos líderes ainda insistiam em se referir à doença como o “ vírus chinês ”, aumentando  ainda mais o preconceito contra cidadãos de origem asiática, refletido em atitudes discriminatórias que se multiplicavam mundo afora conforme a doença se espalhava. Mas a pandemia não apenas agravou o  preconceito contra chineses e cidadãos do Leste Asiático: minorias religiosas e étnicas em vários países vêm sendo cada vez mais perseguidas por conta da doença e, em alguns casos, são deixadas de lado de políticas públicas implantadas pelos governos locais.

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Um documento da Human Rights Watch , publicado na semana passada, aponta que crimes de discriminação e ódio relacionados à doença têm como alvo estrangeiros e visitantes da diáspora negra nos Camarões, indianos muçulmanos e do Nordeste do país, além de várias minorias religiosas no mundo. Na Europa, centenas de milhares de ciganos estão sendo excluídos de medidas de prevenção e contenção da doença. O mesmo ocorre no Paquistão com cristãos e hindus, frequentemente tratados como cidadãos de segunda classe. Na Ásia, a discriminação e estigmatização se voltaram agora contra os africanos que vivem na China, especialmente na província de Guangdong, no Sudeste do país, conhecida como Little Africa.

Muitas vezes, o discurso de ódio e preconceito é destilado pelos próprios governantes, caso da Hungria, Estados Unidos e Índia.

— O racismo e a discriminação estimulados pelos líderes são especialmente desleais. Nos EUA, a retórica focada em rotular o vírus como "chinês" ou "de Wuhan" coincidiu com um aumento nos crimes de preconceito contra americanos asiáticos. O líder da Hungria, Viktor Orbán, usa o coronavírus para atacar imigrantes e abastecer a xenofobia, chegando a dizer a funcionários do governo húngaro que há uma ligação entre imigrantes e o vírus. Na Índia, a hashtag Corona Jihad viralizou depois que membros do partido no poder fizeram essa conexão — explicou ao GLOBO Akshaya Kumar, diretora de gestão de crises da Human Rights Watch.

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Na Ásia

Na semana passada, a organização STOP AAPI HATE recebeu mais de 1.500 denúncias de discriminação de americanos asiáticos em todo o país.  De acordo com o Pew Research Center, a população asiática nos EUA é o grupo étnico que mais cresce, à frente inclusive dos latinos. Manjusha P. Kulkarni, da Asian Pacific Policy and Planning Council, uma das coordenadoras do centro, afirma que o número de denúncias vem crescendo:

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— As declarações do presidente certamente não ajudaram. Na verdade, acredito que elas colocam cidadãos asiáticos americanos em uma situação de vulnerabilidade. Chamar a Covid-19 de vírus chinês não é apenas moralmente repreensível, mas é também realmente destrutivo. E sinaliza a várias pessoas no nosso país que é ok ser racista — critica.

Dentro da Ásia, os casos de discriminação também se espalharam. No início da epidemia, quando a doença não havia atingido outros continentes, mais de 100 restaurantes em Hong Kong recusaram clientes da China continental — um deles chegou a pedir que os frequentadores apresentassem um documento de identidade de Hong Kong.

Agora, no entanto, o preconceito se voltou contra cidadãos do continente africano, com supostas quarentenas forçadas, ameaças de cancelamento de vistos e inclusive de deportação. Muitos africanos teriam sido expulsos de hotéis sem outros motivos além da nacionalidade, submetidos a testes obrigatórios de coronavírus, apesar de não terem viajado nos últimos meses, e suas famílias foram alvo de despejos forçados.

A pandemia também vem ajudando a reforçar antigos preconceitos. Na Eslováquia, o prefeito de Kosice, Jaroslav Polacek, postou um alerta nas mídias sociais de que o coronavírus poderia se espalhar por causa do comportamento de “pessoas socialmente não-adaptáveis ” em assentamentos ciganos que, segundo ele, não respeitam medidas de emergência. O mesmo acontece com refugiados, instalados em campos sem condições mínimas de higiene .

Discriminação religiosa

Na Índia, cidadãos do Nordeste do país, que enfrentam o racismo generalizado há décadas, também estão sendo discriminados por supostamente compartilharem características físicas dos asiáticos orientais. Alguns chegaram a ser detidos para fazer exames, mesmo sem apresentar qualquer sintoma da doença. Fake news que sugerem que a comunidade muçulmana esteja espalhando a Covid-19 deliberadamente, por outro lado, também ajudaram a aumentar a tensão contra a minoria religiosa , alimentada pelo presidente Narendra Modi.

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—  Em parte, isso foi desencadeado pelo fato de que houve uma reunião religiosa em massa de uma seita muçulmana que levou à transmissão de muitos casos em todo o país, mas em grande parte tem a ver com a retórica e o discurso de ódio direcionado à comunidade muçulmana, e isso não pode ser entendido sem olhar para a discriminatória  Lei de Emenda à Cidadania [que favorece a concessão de cidadania a imigrantes de todos os credos do Sul da Ásia, menos o Islã], em andamento na Índia — ressalta Kumar.

A discriminação religiosa também vem aumentando no Paquistão, onde a International Christian Concern (ICC) documentou pelo menos três incidentes contra cristãos e outras minorias.

— A discriminação e perseguição são recorrentes na vida cotidiana de muitos cristãos paquistaneses; no entanto, a pandemia e o bloqueio exacerbaram essa experiência provavelmente por causa do desespero sentido pela sociedade como um todo —  explicou ao GLOBO Will Stark, gerente regional da ICC. — Isso é realmente problemático porque, se em épocas normais, os cristãos são economicamente discriminados e geralmente forçados a entrar no mercado de trabalho informal, com o bloqueio, muitos estão isolados e dependem de ajuda para sobreviver.