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Corte Internacional de Justiça começa a julgar caso de genocídio em Mianmar

Processo levado a Haia por Gâmbia quer medidas para proteger minoria Rohingya no país; Nobel da Paz e líder de fato de Mianmar, Aung Saan Suu Kyi ouviu acusações em silêncio
Ministro da Justiça de Gâmbia, Abubacarr Tambadou faz declarações iniciais no processo que julga a participação do governo de Mianmar no genocídio contra a minoria Rohingya. Ao seu lado, em silêncio, a líder de fato do país, Aung Saan Suu Kyi, que na quarta apresentará a defesa do governo Foto: FRANK VAN BEEK / AFP
Ministro da Justiça de Gâmbia, Abubacarr Tambadou faz declarações iniciais no processo que julga a participação do governo de Mianmar no genocídio contra a minoria Rohingya. Ao seu lado, em silêncio, a líder de fato do país, Aung Saan Suu Kyi, que na quarta apresentará a defesa do governo Foto: FRANK VAN BEEK / AFP

HAIA, Holanda — No primeiro dia de audiências no processo que investiga denúncias de genocídio cometido pelo governo de Mianmar contra a minoria Rohingya, a líder de fato do país e Nobel da Paz Aung Saan Suu Kyi ficou calada ao ouvir as acusações contra seu governo.

O caso foi trazido à Corte Internacional de Justiça pelo governo de Gâmbia, com o apoio dos demais 57 países da Organização de Cooperação Islâmica. Ele aponta indícios de abusos cometidos pelos militares birmaneses durante uma campanha de repressão e limpeza étinica ao longo de 2017 — atos que as Nações Unidas caracterizaram como genocídio.

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Nas declarações iniciais, feitas pelo ministro da Justiça gambiano, Abubacarr Tambadou, ele pediu que Suu Kyi impeça o que chamou de “mortes sem sentido”.

— [Você tem que] parar esses atos de barbaridade e brutalidade que chocaram e continuam a chocar nossa consciência coletiva. Parar esse genocídio de seu próprio povo.

A Nobel da Paz, que terá a chance de expor sua defesa na quarta-feira, também ouviu calada às descrições dos atos de violência feitas pelo advogado Andrew Lowewenstein. Elas estão presentes em um relatório feito por investigadores da ONU na vila de Min Gyi, incluindo o testemunho de uma mulher atacada pelos militares .

— Quando entraram na casa, os soldados trancaram a porta. Um soldado me estuprou, depois me esfaqueou nas costas, no pescoço e na barriga. Tentava salvar meu bebê, que tinha apenas 28 dias de idade, mas ele foi jogado no chão e acabou morrendo.

Ele também leu à corte um relato falando sobre “corpos sem vida no chão: meninos jovens de nosso vilarejo”. Um outro advogado, Philippe Sands, defendeu medidas especiais para proteger a minoria Rohingya, que é muçulmana em uma nação de maioria budista. Isso inclui, por exemplo, ações para restringir a atuação dos militares birmaneses até o fim do caso.

— Apenas desta forma podemos ter alguma esperança de que os direitos de Gambia e a segurança dos Rohingya sejam garantidos.

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Essa é a primeira vez em que um país que não está envolvido diretamente com os eventos em questão usa a Convenção sobre Genocídios da ONU para levar um caso ao Tribunal Internacional de Justiça. Gâmbia há pouco deixou para trás 22 anos de uma ditadura marcada por repressão política e violações dos direitos humanos.

Vale ressaltar que este não é um caso contra pessoas específicas, mas sim contra um governo. Qualquer tipo de medida aprovada pela Corte é obrigatória e será automaticamente enviada ao Conselho de Segurança da ONU, que pode emitir uma resolução contendo algumas das decisões. Porém, o apoio da China ao governo de Mianmar pode ser um entrave. O país já é alvo de sanções aplicadas pelos EUA, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá e Austrália, além da União Europeia. Quase todas as medidas têm como alvo militares ligados à repressão.

Genocídio

A repressão à minoria vem de longa data, refletindo a tensão com os nacionalistas budistas no estado de Rakhine, onde se concentram. Os Rohingya, por vezes chamados de “a minoria mais perseguida do mundo”, não possuem direito a cidadania, a frequentar escolas ou livre movimento. Muitos acabaram fugindo para a vizinha Bangladesh — os que permaneceram ficaram à mercê dos dirigentes do governo central, mesmo depois das reformas que colocaram fim à ditadura militar.

Em 2016, porém, incidentes envolvendo milícias de oposição e soldados do governo se intensificaram, criando os elementos para uma repressão mais ampla. As denúncias de crimes contra a humanidade se intensificaram, incluindo estupros, execuções sumárias, tortura e destruição de aldeias inteiras.

De acordo com o Conselho de Direitos Humanos da ONU, “as ações daqueles que orquestraram os ataques contra os Rohingya seguem uma lista” de como destruir aquele grupo total ou parcialmente. A missão da ONU também concluiu que “o Estado de Mianmar violou suas obrigações de não cometer genocídio, presentes na Convenção sobre Genocídio de 1948”.

Segundo estimativas, mais de 24 mil pessoas morreram e cerca de 750 mil fugiram para outros países, especialmente Bangladesh.

Chamou atenção em particular a reação de Aung Sang Suu Kyi , outrora apontada como uma defensora dos direitos humanos em seu país, onde foi mantida prisioneira por vários anos e cujas ideias lhe renderam o Nobel da Paz em 1991.

Mesmo constitucionalmente impedida de assumir o governo após o fim do domínio militar, passou a ocupar um cargo chamado de Conselheira de Estado , que lhe dava o poder de fato. Uma vez no cargo, passou a evitar responder e até negar as acusações de limpeza étnica, criticando a “interferência estrangeira” na região e questionando a ONU:

— Me mostre um país que não tenha questões ligadas aos Direitos Humanos — disse em 2016.

Dois anos depois, jornalistas que denunciaram um dos massacres foram condenados a sete anos de prisão , e mais tarde acabaram anistiados.

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Por suas posições, perdeu vários prêmios recebidos ao longo dos anos, como o Embaixadora da Consciência, da Anistia Internacional, e o Prêmio Elie Wiesel, do Museu do Holocausto de Washington. Também há um movimento internacional para que perca seu Nobel da Paz. Mas a organização responsável pela honraria disse que isso não é possível .