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Covid-19 e mudanças climáticas podem jogar até 270 milhões na fome nos próximos meses, alertam agências humanitárias

Pandemia e crise do clima expuseram falhas dos sistemas globais de alimentação
Trabalhadores agrícolas plantam cebolas no vilarejo de Sahori em Rajasthan, Índia, em 31 de agosto de 2020 Foto: REBECCA CONWAY / NYT
Trabalhadores agrícolas plantam cebolas no vilarejo de Sahori em Rajasthan, Índia, em 31 de agosto de 2020 Foto: REBECCA CONWAY / NYT

ROMA e LONDRES - Dos incêndios florestais na Califórnia aos ataques de gafanhotos na Etiópia ao desemprego causado pelos lockdowns na pandemia na Itália e em Mianmar, as mudanças climáticas e a Covid-19 causaram distúrbios na produção  de alimentos e jogaram milhões de pessoas às portas da fome em 2020. Agora há medo de que a situação possa piorar ainda mais no ano que vem, com a pandemia de coronavírus e o clima indomável exacerbando as frágeis condições ligadas a conflitos e à pobreza em muitas partes do mundo, advertiram funcionários de agências humanitárias à Reuters.

“Mesmo antes de a Covid-19 começar, 135 milhões de pessoas estavam a caminho da fome. Isso pode dobrar para 270 milhões em poucos meses", alertou  David Beasley, chefe do Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU por e-mail.

Em abril, Beasley, cuja organização em 2020 recebeu o Prêmio Nobel da Paz, disse ao Conselho de Segurança da ONU que o mundo estava enfrentando "uma pandemia de fome" e "múltiplas fomes de proporções  bíblicas".

“Aqueles alertas são apoiados por evidências ainda mais fortes hoje", disse ele, acrescentando que o impacto real da Covid-19 ainda está para ser sentido em vários países.

Ao mesmo tempo, argumenta, a crise do coronavírus mostrou como uma ação internacional mais rápida e melhor cooperação em áreas como ciência e tecnologia podem ajudar a enfrentar o problema. Agricultores e moradores pobres das cidades têm, até agora, carregado o peso maior da pandemia, significando que a desigualdade entre os países  e dentro deles poderia aprofundar-se em 2021, disse Ismahane Elouafi, cientista-chefe da Organização para Alimentação e Agricultura da ONU (FAO, na sigla em inglês).

Alijados dos mercados e sofrendo a queda vertiginosa da demanda dos consumidores, os agricultores estão com dificuldades para vender sua produção, enquanto trabalhadores informais nas áreas urbanas, que vivem no limite da necessidade encontraram-se sem trabalho à medida que os lockdowns eram impostos, disse ela. Como resultado, milhões de pessoas  — do Texas e Genebra a Bangcoc e Acra —  foram forçadas a depender da distribuição de ajuda alimentar pela primeira vez.

Enquanto isso, mais de 50 milhões de pessoas na África Central e Oriental requerem ajuda alimentar emergencial — e os números devem aumentar, com os países se preparando para uma severa seca ligada ao fenômeno La Niña, assim como mais nuvens de gafanhotos, alertou a ONG Oxfam.

Com 2020 em vias de ser o ano mais quente já registrado , agricultores africanos já testemunharam um aumento de condições climáticas duras, assim como de pragas destruidoras de colheitas, disse Agnes Kalibata, enviada especial da ONU para a Cúpula dos Sistemas de Alimentação dew 2021.

— O peso duplo das extremidades climáticas e da Covid-19 deixou claríssimas as limitações de nosso sistema global de alimentação — disse Kalibata, ex-ministro da Agricultura de Ruanda.

Dois recentes relatórios da ONU alertaram que a pandemia de coronavírus poderia causar um aumento da pobreza extrema. Em cada 33 pessoas, uma vai requerer ajuda humanitária para atender a suas  necessidades básicas de água e comida em 2021, um aumento de 40% em relação a este ano, diz um dos relatórios. O outro afirma que um bilhão de pessoas poderiam ser lançadas na pobreza até 2030.

A Covid-19 é "um arauto" do que a crise climática vai trazer, disse Saleemul Huq, diretor do Centro Internacional para Mudança Climática e Desenvolvimento, de Bangladesh.

— Um dos principais impactos provavelmente será na produção de alimentos, em todos os continentes: na agricultura, na pesca, nos rebanhos.

A ação climática tem frequentemente focado no corte de emissões de carbono em energia e transportes, mas transformar os sistemas de alimentação também é crucial para manter o aquecimento global em níveis manejáveis, disse um estudo recente liderado pela Universidade de Oxford.

Mas mudar a inacreditavelmente complexa e cada vez mais global teia de sistemas alimentares é um grande desafio, mesmo porque não há substitutos para a comida, disse um dos autores do estudo, Michael Clark.

Tornar a produção de alimentos mais sustentável vai requerer foco no cultivo, no consumo e em meios de reduzir a perda e o desperdício, disse Clark.

Bloqueios induzidos pela pandemia promoveram mudanças de atitudes nos países ricos em relação ao desperdício de alimentos e ao consumo de carne, que reforçam as emissões de gases de efeito estufa. Enquanto isso, há um reconhecimento crescente entre os especialistas de que um enfoque estreito na produtividade da safra vem às custas do meio ambiente, da equidade e da nutrição, disse James Lomax, especialista em sistemas alimentares da ONU. Muitos na indústria de alimentos também começaram a entender isso, mesmo antes de a Covid-19 interromper as cadeias de abastecimento, reduzir os lucros e destacar as ligações entre agricultura, produtos animais e doenças zoonóticas, disse ele. Essas mudanças, juntamente com cúpulas de alto nível programadas para o próximo ano sobre as questões interligadas de alimentos, saúde, natureza e clima, oferecem oportunidade para mudar radicalmente a forma como os alimentos são produzidos e consumidos, disseram os especialistas.

— Temos a oportunidade de fazer a coisa certa — disse Elouafi, da FAO.