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Crescimento econômico superior ao dos países vizinhos foi eixo da campanha de Morales na Bolívia

Queda das exportações de gás, porém, desarranja contas públicas e acende sinal amarelo na economia do país, onde presidente tenta quarto mandato

Morales no último comício; gestão prudente e elo com empresários o distinguiram dos demais bolivarianos
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Manuel Claure/REUTERS/16-10-2019
Morales no último comício; gestão prudente e elo com empresários o distinguiram dos demais bolivarianos Foto: / Manuel Claure/REUTERS/16-10-2019

RIO - De orientação socialista, com uma linguagem populista, mas responsável por uma gestão considerada ortodoxa das contas públicas, o presidente da Bolívia , Evo Morales , fez do avanço econômico e social a base do seu pleito por um quarto e controvertido mandato presidencial na eleição deste domingo. Nos quase 14 anos em que está no poder, o país cresceu mais e de modo mais estável do que os vizinhos, a pobreza caiu pela metade e a maioria indígena — Morales é de origem aimará — foi incluída no mercado e na política.

— Com o irmão Álvaro [García Linera, seu vice], pedimos cinco anos mais para aproveitar nossa experiência, terminar as grandes obras em petroquímica, ferro e lítio e baixar a pobreza para menos de 5% — disse Morales ao encerrar sua campanha na última quarta-feira. — Meu sonho é que a Bolívia continue sendo a primeira em crescimento na América do Sul.

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Apesar da bonança, analistas econômicos advertem que a queda das exportações de gás , que chegou a 25% nos primeiros sete meses deste ano, vem agravando uma deterioração das contas públicas que representará desafios para o próximo presidente, seja quem for eleito.

Nacionalização

A hoje reconhecida prudência fiscal do governo Morales começou com uma medida pouco ortodoxa: a nacionalização da exploração do gás, ocorrida em pleno boom das commodities, aos cinco meses do seu primeiro mandato, em 2006. A renegociação forçada dos contratos com as petrolíferas estrangeiras que atuavam no país, incluindo a Petrobras, significou o aumento dos impostos e royalties, irrigando os cofres do Estado boliviano. Com o dinheiro extra, Morales recompensou sua base com o aumento dos gastos sociais, que por sua vez fortaleceram o consumo.

Hoje, 51,5%, dos bolivianos se beneficiam de programas de transferência de renda, com bolsas que ajudam a pagar de material e transporte escolar a moradias sociais. De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a pobreza caiu de 60% para 34%, e a extrema pobreza passou de 38% para 15%. O salário mínimo nacional quase dobrou, passando do equivalente a US$ 54 em 2005 para US$ 305, subindo do último para o quinto lugar na região.

Setor privado

Ao mesmo tempo, o governo manteve as contas em dia quando os preços das commodities estavam mais altos, e, na direção oposta da maioria dos vizinhos sul-americanos, conseguiu manter um crescimento médio de 4,9% depois que eles começaram a cair, no início desta década.

— Diferentemente de outros bolivarianos, Evo fez uma gestão bastante ortodoxa, não gastando acima de suas possibilidades, o que mantém o nível de reservas e crescimento — destacou Carlos Malamud, analista para a América Latina do Real Instituto Elcano, da Espanha. — Sua linguagem é muito populista, mas, diferentemente de Rafael Correa e Hugo Chávez [ex-presidentes do Equador e da Venezuela], ele flertou muito pouco com o socialismo do século XXI.

Uma diferença marcante em relação a Chávez foi a boa relação estabelecida por Morales com os empresários. O Estado reforçou seu controle sobre setores considerados estratégicos — petróleo e gás, mineração e eletricidade — , mas deu ampla liberdade de ação às grandes empresas industriais, comerciais e financeiras, como observa o analista boliviano Fernando Molina em artigo recém-publicado na revista argentina Nueva Sociedad. Em 14 anos, o patrimônio dos bancos nacionais cresceu 260%, passando de US$ 700 milhões para US$ 2,55 bilhões.

Além disso, diz Molina, houve um “pacto de coexistência” com os pequenos empreendimentos artesanais e comerciais, “que empregam mais de 60% da força de trabalho, mas não cumprem as leis trabalhistas e tributárias do país”.

— Evo é um pragmático desde o primeiro mandato e segue equilibrando posições com vistas a eliminar chances do surgimento de oposições, dentro e fora da Bolívia — disse Marcelo Coutinho, professor associado da UFRJ.

Outro aspecto destacado por Molina é o controle da inflação e a desdolarização da economia — enquanto no início dos anos 2000 só 3% dos depósitos eram denominados em pesos bolivianos, hoje essa proporção é de 94%.

Dependência do gás

Ainda assim, os analistas econômicos têm chamado atenção para a piora gradual das contas públicas, provocada pela alta dependência das exportações do gás e de minerais, a despeito dos esforços do governo para investir na indústria petroquímica e na produção de baterias de lítio, do qual a Bolívia detém uma das maiores reservas mundiais.

Com a queda do valor das vendas de gás — e a redução do volume comprado por Brasil e Argentina, os principais clientes do produto —, o déficit comercial boliviano cresceu. A balança da conta corrente — a diferença entre todo o dinheiro que entra e sai do país — passou de um superávit de 1,7% do PIB para um déficit de 4,8%. São US$ 2 bilhões por ano, que reduzem as reservas bolivianas em divisas. O déficit orçamentário chegou a 8% do PIB e a dívida pública também subiu, para 54% do PIB.

Crescimento boliviano supera o dos vizinhos
Variação do PIB entre 2008 e 2018 (em%)
Bolívia
59
60
Peru
50
53
40
Equador
35
30
Chile
33
20
Brasil
12,3
10
0
2008
09
10
11
12
13
14
15
16
17
2018
Fonte: FMI/Financial Times
Crescimento boliviano
supera o dos vizinhos
Variação do PIB entre 2008 e 2018 (em%)
Bolívia
59
60
Peru
50
53
40
Equador
35
30
Chile
33
20
Brasil
12,3
10
0
2008
09
10
11
12
13
14
15
16
17
2018
Fonte: FMI/Financial Times

Esses números levam economistas a pregarem um ajuste, com a redução dos investimentos públicos — responsáveis pelo déficit no orçamento — e das importações, o que reduziria o crescimento. Em relatório recente, o Fundo Monetário Internacional advertiu que “o modelo de sucesso foi baseado em fatores que não são sustentáveis”.

— O desempenho relativamente estável e sólido da Bolívia nos últimos anos e os números das manchetes são um pouco enganadores porque, em nossa opinião, refletem políticas que parecem cada vez mais insustentáveis — disse Todd Martinez, diretor da Fitch Ratings, em entrevista coletiva em junho.