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Deputados do Chile rejeitam projetos de saque de fundos de pensões em primeiro teste legislativo de Boric

Resultado é ambivalente para o presidente, que apresentou o próprio projeto para barrar outro mais amplo; ministro da Fazenda afirma que o importante são as reformas de longo prazo
Deputados da Frente Ampla, partido de Boric, votam a favor do projeto do governo durante votação na noite desta segunda-feira Foto: Câmara dos Deputados do Chile
Deputados da Frente Ampla, partido de Boric, votam a favor do projeto do governo durante votação na noite desta segunda-feira Foto: Câmara dos Deputados do Chile

SANTIAGO — Os dois projetos de lei — um apresentado por deputados, outro pelo governo de Gabriel Boric — que permitiriam que os chilenos fizessem um quinto saque de seus fundos de pensão foram rejeitados pela Câmara dos Deputados na noite de segunda-feira. Os projetos se diferenciavam pela autorização concedida: enquanto, na versão dos deputados, quem fizesse os saques poderia gastá-los como bem entendesse, a proposta do governo atrelava os saques ao pagamento de dívidas.

Após mais de oito horas de debate e mais de 100 intervenções, a Câmara rejeitou, com 70 votos a favor, 70 contrários e 12 abstenções, o projeto geral de retirada de fundos. Apresentada por parlamentares independentes de esquerda, com apoio de membros de partidos da centro-esquerda, a iniciativa também recebeu apoio da oposição de direita. Já a versão do governo teve  68 votos a favor, 83 contra e 2 abstenções.

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Os projetos de lei foram criticados por economistas por terem caráter inflacionário e esvaziarem as poupanças dos chilenos. Atualmente, a inflação no Chile está em cerca de 10%. Segundo a presidente do Banco Central, a taxa poderia chegar a até 15% no meio do ano se a lei dos saques universais tivesse sido aprovada.

O projeto dos deputados agora fica arquivado e não poderá ser apresentado no Congresso por um ano. A iniciativa do Executivo, por sua vez, pode ser apresentada no Senado se o governo assim quiser.

A votação na Câmara dos Deputados foi o primeiro grande desafio no Legislativo para o presidente Boric, pouco mais de um mês após sua posse. O Congresso que emergiu das eleições de dezembro tem uma divisão igualitária de forças nas duas Casas, o que significa que a tramitação dos projetos exige acordos entre parlamentares de todo o cenário político.

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Quando deputado, Boric votou a favor dos saques dos fundos de pensão, embora a medida fosse criticada por economistas. Ele justificou sua oposição aos saques universais dizendo que a crise sanitária arrefeceu e a economia chilena se recuperou.

Para alguns, o resultado das votações significa um fracasso para o governo, por não ter conseguido aprovar o seu próprio projeto de retiradas limitadas, enquanto, para outros houve uma vitória, pois a proposta do Congresso foi barrada, e esta era a prioridade do governo.

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O Ministro da Economia, Mário Marcel — que, até logo antes de assumir, era presidente do Banco Central, e um ferrenho opositor dos saques — deu impressões positivas sobre o bloqueio à iniciativa dos deputados.

— Isso indica que os argumentos que colocamos na mesa foram compreendidos pelos parlamentares. Acho que se entendeu que esse era um cenário diferente do que existia na primeira retirada, e que os danos que [aprovar a proposta] teria causado aos cidadãos teriam sido muito maiores do que qualquer benefício pontual — disse em uma entrevista a jornalistas.

Marcel afirmou que o bloqueio “é um indicativo da maturidade e responsabilidade” dos parlamentares. Sobre a rejeição do projeto do governo, apresentado na semana passada, Marcel foi mais ambíguo: embora não tenha demonstrado satisfação, tampouco condenou a votação.

— O certo é que ao votar contra este projeto, votaram contra a possibilidade de transformar a utilização de fundos de pensão para pagamento de dívidas em um mecanismo permanente — disse. —Vamos ver se há espaço para insistir em algumas dessas questões, mas o mais importante é nos concentrarmos em nossa agenda de reformas de longo prazo.

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Giorgio Jackson, secretário da Presidência, deu a entender que o governo não tem expectativas de aprovar o projeto no Senado.

— Após a rejeição na Plenária aqui, agora é necessário um quórum muito maior no Senado. E se a tendência de votos, continuar não conseguiremos aprovar no Senado.

Sobre a agenda legislativa previdenciária, Jackson garantiu que o Executivo está "100% focado em fazer uma reforma previdenciária". Totalmente privada, a Previdência chilena é um antigo objeto de críticas da esquerda, e sua reforma foi uma das principais promessas de campanha de Boric.

— Se há algo que ficou claro nas intervenções de ontem [segunda], é que os parlamentares nos transmitem, direto de seus distritos, que é necessária uma reforma urgente do sistema previdenciário — disse Jackson.

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A coalizão do governo teve um comportamento com algumas indisciplinas.  Os deputados da chapa Aprovo Dignidade — formada pela Frente Ampla, de Boric, e pelo Partido Comunista — votaram, em sua grande maioria, respeitando as orientações do governo. Por outro lado, entre os integrantes da coalizão do Socialismo Democrático, que reúne os partidos da centro-esquerda tradicional, 16 de 30 deputados votaram a favor dos saques universais.

Há menos de 40 dias no cargo, Boric viu sua popularidade diminuir, em um país que desde outubro de 2019 vive grande instabilidade política. O presidente tem o desafio de promover uma agenda de reformas ambiciosas sem maioria parlamentar e tendo uma base de apoio que inclui setores radicalizados, que veem com grande desconfiança a política institucional..