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'Devemos isolar os extremos de esquerda e direita', diz embaixador do Chile no Brasil

Diplomata afirma que país incluirá 'elementos do Estado de bem-estar' na equação econômica e alerta para o risco político causado por manifestações violentas
Protesto lembra os mais de 300 casos em que manifestantes foram feridos nos olhos por balas de borracha; embaixador disse que casos devem ser investigados e punidos Foto: MARTIN BERNETTI / AFP/10-12-2019
Protesto lembra os mais de 300 casos em que manifestantes foram feridos nos olhos por balas de borracha; embaixador disse que casos devem ser investigados e punidos Foto: MARTIN BERNETTI / AFP/10-12-2019

As manifestações que ocorrem no Chile desde 18 de outubro expressam reivindicações legítimas de um país em que a classe média foi sufocada pelas baixas aposentadorias pagas pela Previdência — segundo um sistema de capitalização instituído durante a ditadura de Augusto Pinochet — e os custos altos da saúde. O presidente Sebastián Piñera mudou o programa pelo qual foi eleito para “colocar alguns elementos do Estado de bem-estar” na equação que, até então, fazia do país um exemplo de economia liberal. No entanto, a persistência de atos violentos criaria o risco de que grupos de extrema esquerda e extrema direita tirem proveito da situação. Para evitar que isso aconteça, as forças democráticas devem trabalhar juntas para “isolar os extremos”.

O diagnóstico foi feito embaixador do Chile no Brasil, Fernando Schmidt , em entrevista ao GLOBO. Em relação às denúncias de violações de direitos humanos pelas forças de segurança, o diplomata afirmou que, num Estado de Direito, “não pode haver um só caso de violação”. Ontem, o chefe dos Carabineiros, Mario Rozas, anunciou reformas na força por causa desses abusos . Leia abaixo a íntegra da entrevista:

O embaixador do Chile no Brasil: “Os chilenos pensam que cifras macroeconômicas muito lindas não são suficientes, é importante uma distribuição melhor”
Foto: Fabio Rossi / O Globo
O embaixador do Chile no Brasil: “Os chilenos pensam que cifras macroeconômicas muito lindas não são suficientes, é importante uma distribuição melhor” Foto: Fabio Rossi / O Globo

A reação inicial do presidente Sebastián Piñera aos protestos foi considerada ruim. Ele foi surpreendido e sua posição foi mudando. Ao que o senhor atribui essa onda de manifestações que surpreendeu o mundo político chileno?

Tivemos durante muitos anos acumulados vários gargalos, especialmente na Previdência, que eclodiram neste momento. Tal como o presidente manifestou, existem também problemas no âmbito da saúde, dos transportes, que foram claramente reconhecidos por ele. Quanto à primeira afirmação, quando você diz que a reação foi ruim, claro: um governo deve controlar a ordem pública, a sua primeira responsabilidade é o controle da ordem pública. E isso foi o que aconteceu naquele momento.

No atendimento das demandas, o governo e o Congresso já aprovaram alguns passos. O que está sendo feito?

Há toda uma nova agenda social. Com o apoio da oposição, estamos tentando construir um novo país para que essa classe média, que é aquela que se manifestou em Santiago, com 1,2 milhão de pessoas, se sinta protegida, estimulada a continuar contribuindo para o progresso do país. O pacto econômico também está sendo elaborado com novos impostos mais elevados, um gasto maior do Estado, nova infraestrutura. Estamos tendo em muitas dessas leis uma reação favorável da oposição, o que é muito importante. Isso quero enfatizar muito: o mais importante neste momento é isolarmos manifestações violentas daqueles que se manifestam dentro do jogo democrático, pacificamente, por condições de vida melhores. A violência não é democrática, ela utiliza esses mecanismos para destruir a democracia.

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Que grupos sociais o governo vê por trás desses episódios mais violentos?

Existe um anarquismo claro, existe um narcocrime que também utiliza os jovens para saques, há pessoas que se aproveitaram da situação. Existem grupos de tipo contracultural, outros que são antissistema. Existem todos os que picham as paredes com “Ancap” [anarcocapitalismo] ou “Cops are bastards” [policiais são bastardos], existem torcedores de futebol. É um grupo sem liderança, sem uma narrativa clara, mas que está nas ruas. Tudo isso é atribuído a uma falha social profunda do país, que não é própria de um momento determinado, mas que está se arrastando e alastrando por muitos anos, talvez décadas.

Por outro lado, as forças da segurança, especialmente os Carabineiros, têm sido acusadas, pelo próprio Instituto Nacional de Direitos Humanos, de violações. Ficaram conhecidos os casos de pessoas atingidas nos olhos por balas de borracha. A que o senhor atribui essas violações?

Não poderia saber a que atribuir essas violações, mas estamos claramente preocupados com que todas as violações de direitos humanos sejam levadas à Justiça, apuradas, e sejam devidamente punidas em casos em que exista culpa. O sistema democrático deve ser coerente, o Estado de Direito deve ser coerente com um Estado onde as violações dos direitos humanos não acontecem. Não pode haver um só caso de violação de direitos humanos. É grave.

O presidente Piñera foi eleito com um programa e teve que mudá-lo. Isso é um reconhecimento da legitimidade das reivindicações populares?

Claramente sim. O presidente Piñera, em suas intervenções, em seus discursos,  diz que admite que essas reclamações são legítimas e que está mudando o programa para fazer algo mais próximo ao que as pessoas estão reivindicando.

Como o senhor vê a reação de setores mais à direita, e até da extrema direita, que podem até ter votado no presidente Piñera contra a centro-esquerda e a esquerda, diante da virada no programa de governo?

É um perigo porque pode polarizar a sociedade, e são as forças democráticas, aquelas que acreditam realmente na democracia, que devem colocar o maior esforço para aprovar as leis que estão sendo apresentadas ao Congresso de forma rápida e também iniciar um processo constituinte que abra caminho a um novo pacto. Devemos isolar os extremos, sejam de extrema direita ou de extrema esquerda.

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Existe o risco, como aconteceu em outros países, de essa onda de manifestações ser capitalizada pelos extremos?

Poderia existir se não se puser fim a manifestações violentas. Existe esse risco de que isso seja capitalizado por aqueles que estão buscando enfraquecer a democracia chilena. E é um risco grave.

O Congresso aprovou a proposta da Constituinte, começando com um plebiscito em que as pessoas vão primeiro dizer se querem ou não uma nova Constituição e, se positivo, como ela seria feita. As forças políticas, no entanto, têm em geral baixa aprovação. Elas vão conseguir superar essa descrença e conduzir o processo?

Acreditamos que sim. Precisamos, todos os chilenos, de partidos políticos, e que eles assumam uma responsabilidade dentro dessa crise. Esses partidos devem fortalecer mais as instituições democráticas e serem responsáveis diante do seu papel no momento atual. É grave, claro, que o Congresso, por exemplo, esteja tão mal avaliado pela população. Mas isso é parte da dinâmica desse processo.

As pesquisas mostram que, apesar do impacto dos protestos na economia, os chilenos estão otimistas em relação ao futuro. Como o senhor explica esse aparente paradoxo?

Se você analisar os números do Banco Central divulgados na semana passada, o crescimento da economia do país vai continuar sendo positivo neste ano apesar das manifestações. O crescimento vai ser também positivo no próximo ano, sempre, claro, que a violência cesse. A violência já parou nos últimos dias, e existe um debate interessante no mundo político para mudanças específicas em leis que vão dar mais segurança e também um maior bem-estar aos chilenos.

Essa redução dos episódios violentos teria a ver com a rejeição da população, à medida que afeta o pequeno comerciante, o pequeno negócio, como foi apontado inclusive por parlamentares da oposição?

Muita. Porque a população está bastante farta da violência, na sua vida diária, no seu transporte para o trabalho. O supermercado onde ele comprava, onde fazia sua vida, ficou destruído. O cidadão já começou a se revoltar e isso aparece claramente nas pesquisas.

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As forças da extrema direita a que o senhor se refere estão no Congresso ou não têm representação?

Não têm representação parlamentar e algumas delas são democráticas, mas não gostariam de uma troca de Constituição, consideram que tudo que está sendo feito é uma mudança brusca na condução política do governo, e não gostam disso. Agora, são forças representativas? Não sabemos porque essa é uma situação dinâmica e precisaríamos talvez ter uma eleição para saber qual a real força disso.

No plebiscito da Constituinte, em abril, isso vai ficar claro?

Sem dúvida.

O Chile sempre foi tido como exemplo de uma economia liberal bem-sucedida. Em resumo, os chilenos estão pedindo mais Estado, mais benefícios?

Sem dúvida. Existe uma responsabilidade do Estado. Os chilenos estão pensando que não é suficiente um crescimento do PIB, cifras macroeconômicas muito lindas, é importante também uma distribuição melhor dos benefícios. Nesse contexto estão manifestando essa opinião.

A Previdência foi um fator-chave?

Muito importante. Tudo está mudando na Previdência, na saúde. Tudo tem a ver com colocar alguns elementos do Estado de bem-estar dentro da nossa equação, sem perder a capacidade de crescer. Não se trata de repartir destruindo a capacidade de crescer, destruindo toda a poupança.