Exclusivo para Assinantes
Mundo Eleições EUA 2020

Direita populista radical sofre baque com fracasso de Trump, mas está longe de sucumbir

Figuras como Bolsonaro, Salvini e Orbán torceram abertamente pela reeleição do republicano e viram suas expectativas se frustrarem. O que aguarda cada um deles deve variar caso a caso
Apoiadores de Trump se manifestam do lado de fora da Assembleia da Pensilvânia, onde Biden venceu. Mentiras sobre derrota manterão base mobilizada Foto: VICTOR J. BLUE / NYT
Apoiadores de Trump se manifestam do lado de fora da Assembleia da Pensilvânia, onde Biden venceu. Mentiras sobre derrota manterão base mobilizada Foto: VICTOR J. BLUE / NYT

Para muitos militantes e líderes da direita radical internacional, a ocupação do cargo mais poderoso do mundo por uma figura de retórica xenofóbic a, que desvaloriza normas e instituições até então intocáveis, despreza o discurso politicamente correto e não preserva o mínimo respeito por opositores, significou uma consagração. Não surpreende, assim, que, antes das eleições americanas, o premier da Hungria, Viktor Orbán, tenha afirmado que uma vitória de Donald Trump era o seu “Plano A”. Na Itália, Matteo Salvini, líder da direitista Liga, usou uma máscara contra a Covid endossando Trump, e hoje espalha teorias da conspiração de que a eleição pode ter sido fraudada. No Brasil, Jair Bolsonaro nunca escondeu o seu apreço e torcida pelo republicano, e agora se isola internacionalmente ao não reconhecer o triunfo de Joe Biden.

O fracasso eleitoral de Trump não repercute da mesma maneira sobre todas estas e outras figuras. A direita populista se retroalimenta, se imita e se inspira transnacionalmente, mas particularidades em cada país, como o enraizamento das forças conservadoras, intensificam ou atenuam as consequências das mudanças em Washington.

As fraturas econômicas, sociais e políticas que possibilitaram a ascensão de Trump e de seus aliados não deixaram de existir dentro ou fora dos Estados Unidos, nem há indícios de que isso esteja prestes a acontecer. Embora o Partido Democrata tenha baseado sua campanha em um discurso de união, grande parte da base de Trump, que recebeu mais de 70 milhões de votos, se mantém mobilizada por meio de falsas acusações de fraude eleitoral, em uma inédita campanha de descrédito da legitimidade do pleito. As mídias sociais oferecem terreno fértil a este tipo de facciosismo. Se os parceiros ideológicos de Trump sofreram um golpe, é certo que o extremismo de direita não sucumbirá tão cedo.

— Atores populistas aprendem com as experiências e tendem a revisar estratégias em função de derrotas. Do mesmo jeito que a eleição de Trump representou um troféu para a direita populista, pode-se esperar que ela se adapte à nova conjuntura — afirmou Aline Burni, pesquisadora brasileira no Instituto de Desenvolvimento Alemão (DIE), em Berlim. — As forças populistas são diferentes ao redor do mundo. O impacto é maior no caso da direita radical na América Latina, sobretudo para Bolsonaro. Na Europa, estas forças já existiam há mais tempo e estão mais consolidadas.

Bolsonaro olha para a base

Burni afirmou que a reação de Bolsonaro está condicionada à reação de seu próprio eleitorado aos eventos externos. Embora haja quem considere que o presidente possa vir a tomar atitudes pragmáticas, com o enfraquecimento da ala representada pelo chanceler Ernesto Araújo e o assessor internacional Filipe Martins, a pesquisadora disse “ter dúvidas” dessa hipótese, porque o presidente brasileiro “sempre desconfia muito de quem não é próximo dele ideologicamente”. Como resultado, depois de se afastar de China e União Europeia, o Brasil pode se ver distante dos EUA.

Um indício disso é que, até agora, o núcleo mais duro da base de Bolsonaro copia o trumpismo — assim como o fez durante a campanha, quando Martins, oráculo do presidente para assuntos internacionais, negou as pesquisas e afirmou o favoritismo de Trump  até dias depois da votação. Em redes sociais, milhares de contas brasileiras agora disseminam as acusações infundadas de fraude, sustentando a cada vez mais irreal hipótese de uma virada nos tribunais. David Magalhães, professor de Relações Internacionais da FAAP e cofundador do Observatório da Extrema Direita Brasil, observa que não há novidade neste comportamento, porque a “direita brasileira, desde o pós-Segunda Guerra, vem se inspirando na direita americana”.

— Vimos o reaganismo se tornar popular no Brasil. Depois, com Bush, nossa direita justificou a guerra contra o Iraque imitando os argumentos neoconservadores dos EUA. O bolsonarismo sempre tece como norte a ideologia nacional-populista de Trump. O trumpismo inspirou Bolsonaro e os bolsonaristas, tudo na base da mimese, da imitação.

Essa imitação, diz Burni, pode vir a se repetir também em 2022, com um possível não reconhecimento do resultado por Bolsonaro.

— Isto seria coerente com questionamentos da integridade do sistema eleitoral que ele faz de longa data — afirmou ela.

Europa diferente

O impacto deve ser diferente na Europa. Embora Trump tenha inspirado movimentos como o Vox, na Espanha, o ultranacionalismo em países como Hungria e Polônia vem de muito antes, e tem um assentamento sólido. Outras lideranças, como Marine Le Pen, na França, sempre viram Trump com embaraço, e chegaram mesmo a alimentar sentimento antiamericano.

— Não espero que a derrota tenha impacto algum fora dos EUA— disse Hans-Georg Betz, da Universidade de Zurique, destacando não estar a par do caso brasileiro. — Trump é um fenômeno muito americano, que diz respeito a décadas de política no país, e não tem qualquer relação com a Europa Ocidental ou, digamos, com a Turquia. Alguns líderes europeus talvez fiquem um pouco tristes, mas os líderes da Europa Ocidental nunca foram particularmente fãs de Trump.

A respeito das futuras simpatias por populistas, o historiador da Universidade de Londres Andrea Mammone entende que condições nacionais nos países, sobretudo relacionadas à economia e à pandemia, serão mais importantes do que a situação nos EUA.

— A reação ao corona vírus é mais relevante do que Trump. A maioria das pessoas vê os exemplos dele e de Bolsonaro como muito negativos — afirmou Mammone.

Em relação ao contexto interno americano, o historiador observa que não está claro quantos dos 70 milhões de republicanos — a maior votação da História, logo atrás de Biden —votaram “por serem republicanos, e quantos porque amam Trump”. Ele demonstra preocupação com o movimento das milícias, e afirma que “o contexto subterrâneo que permitiu a ascensão de Trump não desapareceu”.

Quanto ao que esperar de Biden, Cas Mudde, professor de ciência política da Universidade da Geórgia e do Centro para a Pesquisa sobre o Extremismo (C-Rex) da Universidade de Oslo, afirma que Biden levará a luta da democracia liberal “ao exterior, e se levantará contra Orbán na Hungria, o PiS na Polônia e Bolsonaro”.

— Mesmo apenas uma crítica aberta do presidente dos EUA, o líder nacional mais poderoso do planeta, pode ter impactos domésticos sobre um líder, principalmente se se tratar de um país menor, muito dependente dos EUA econômica, militar, ou politicamente. Biden também pode iniciar sanções dos EUA contra um líder, grupo de pessoas ou país, ou pressionar outros países e organizações para aumentar a pressão ou iniciar sanções, como a UE e a ONU.

Sobre a situação interna na Europa, Hans-Georg Betz afirma que os Estados Unidos estão sem crédito com “a União Europeia, que é totalmente capaz de tomar conta de seus próprios problemas”:

— Na Europa Ocidental,  a impressão geral é que demorará muito tempo para as coisas nos EUA se estabilizarem. Para qualquer chefe de Estado europeu, os Estados Unidos afirmarem que liderarão a democracia é absolutamente ridículo.Não é só porque Trump perdeu que as coisas vão mudar, a polarização no país está muito forte. A imagem americana na Europa hoje está severamente abalada.

O show não acabou

Matthew Feldman, diretor do Centro de Análise da Direita Radical, baseado em Londres, afirma que “o show de Trump” não acabou. Ele prevê uma estratégia de “denúncias falsas, comícios, atiçamento da raiva e ruptura com as normas” da parte do presidente. Antecipa, também, uma “batalha pelo coração do Partido Republicano” para o futuro próximo. Isto, ele diz, pode inclusive atenuar a polarização:

— Tantas coisas nas quais se acredita sobre o trumpismo serão provadas falsas nos próximos meses. É muito incerto como Trump irá responder a mais republicanos reconhecendo a derrota — afirmou Feldman. — Entramos aí em uma questão psicológica. Não acredito que alguém como Trump seja capaz de admitir derrota. Estamos em um terreno muito fluido, e ele pode inclusive incitar a violência.

Sobre alegações de fraude, Cas Mudde prevê que  “a curto prazo, elas significarão uma eleição e transição prolongadas, com polarização crescente e uma base de Trump ainda mais furiosa e ainda mobilizada. Isso manterá o Partido Republicano em dívida com Trump e sua base, até que Trump perca o interesse no jogo político ou seus mais fervorosos partidários sejam rejeitados nas eleições de 2022”.

Feldman acredita na “competência como melhor antídoto ao populismo”, e diz ser esta a melhor aposta de Biden:

— Não sabemos qual é a melhor forma de enfrentar os populistas. Mas, quando você adota uma estratégia tecnocrática, com domínio dos detalhes e habilidade em governança, consegue deixar claro o péssimo trabalho que outros estão fazendo, como por exemplo no caso da Covid-19. Isso é muito melhor do que ficar demandando moderação.

David Magalhães, por sua vez, expressa ceticismo:

— Essa derrota deve desacelerar a ascensão da extrema direita, mas nem Biden nem a União Europeia conseguem reverter causas estruturais dessa ascensão. Três décadas de globalização, sobretudo entre 1988 e 2008, produziram consequências muito grandes em termos de desigualdade nos países da OCDE. A derrota de Trump não muda a exaustão deste modelo nem tampouco a crise da democracia liberal, que passa por um problema não superado de representação. As causas políticas da ascensão da extrema direita permanecem.