Mundo Coronavírus

Em meio a desconfinamento, Portugal conta com médicas brasileiras no combate à Covid-19

Profissionais de saúde do Brasil são maioria entre os estrangeiros no Sistema Nacional de Saúde, que ganhou força na pandemia; país realiza tratamento experimental com plasma sanguíneo
Médica brasileira Nair Almeida Amaral, que atua em hospitais de Lisboa Foto: Arquivo Pessoal
Médica brasileira Nair Almeida Amaral, que atua em hospitais de Lisboa Foto: Arquivo Pessoal

LISBOA — Quando as máscaras caem dos rostos ao fim de um plantão, as médicas brasileiras no combate ao coronavírus em Portugal exibem expressões de alívio e satisfação. Elas são parte de um trabalho capaz de permitir ao país entrar nesta segunda-feira na segunda fase do plano de desconfinamento com mais pacientes recuperados diariamente do que o número de óbitos, além de uma curva estabilizada de novos casos.

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Possíveis pontos de entrada nos hospitais durante a pandemia, as emergências do Sistema Nacional de Saúde (SNS) estão repletas de médicos estrangeiros, e a maior parte é brasileira. Para a gaúcha Nair Almeida Amaral, que chegou ao país há dois anos na nova onda de médicos imigrantes — os brasileiros são 777 entre dois mil profissionais internacionais no SNS — saber da recuperação de um paciente é revigorante.

— Enquanto estamos no “covidário” por até oito horas, não comemos, não bebemos nem vamos ao banheiro. Após 25 anos de carreira, eu me sinto feliz. Cansada, mas feliz, como se estivesse lá atrás, no início da (minha atuação na) medicina. Recebo meu salário em dia e nunca faltou material de proteção. Passamos a acreditar mais no SNS,  e a população também. Isto se reflete numa melhor recuperação — disse Nair, que trabalha em dois hospitais de Lisboa.

Médica brasileira Nair Almeida Amaral, que atua em hospitais de Lisboa Foto: Arquivo Pessoal
Médica brasileira Nair Almeida Amaral, que atua em hospitais de Lisboa Foto: Arquivo Pessoal

Com inúmeros limites relativos a lotação, distanciamento social e obrigatoriedade do uso de máscaras, o país estende nesta segunda-feira a reabertura aos restaurantes, cafés, lojas com até 400 metros quadrados, creches, escolas (11º e 12º anos), casas de repouso, museus, monumentos e galerias de arte. Além disso, o governo programou o início do tratamento experimental com plasma sanguíneo até o fim de maio nesta segunda fase.

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A transfusão do material rico em anticorpos ajuda a combater o vírus nos infectados. No Hospital São João, no Porto, a médica brasileira Mariana Pontes Ramalho está envolvida no serviço médico que fará trabalho de coleta de plasma dos voluntários, que já são mais de 400, segundo o Instituto Português do Sangue e Transplantação (IPST). O procedimento está em fase de autorização.

— O objetivo é ter anticorpos específicos contra o coronavírus ao coletar plasma de pessoas recuperadas, como tem sido feito em vários países, para fazer a infusão em doentes com doença ativa —   disse Mariana, natural de João Pessoa, formada na Universidade Federal da Paraíba e com mestrado em Saúde Pública pela Universidade do Porto.

Coordenada pelo IPST, a página do Programa de Colheita de Plasma Convalescente na internet informa que a medida depende do primeiro registro feito pelo doador. Depois, cada paciente recuperado recebe a confirmação em um telefonema dado por um médico. Em resposta a O GLOBO, a assessoria do IPST informou que o início do programa depende das conclusões de um grupo de trabalho, que deverá elaborar a proposta de programa até o fim deste mês.

Rastreamento dos casos

Este acompanhamento individual, realizado em todas as fases da doença, é apontado pela médica paulista Tammy Messias como um dos fatores para o controle do surto. Ela faz o rastreamento dos casos e o contato com a população na Unidade de Saúde Pública de Gondomar, cidade vizinha ao Porto. Foi uma das áreas mais importantes na prevenção, porque permitiu constatar o isolamento antes que o infectado propagasse o coronavírus. Isso colaborou para que o risco de transmissão, que mede a taxa de contágio, tenha ficado abaixo de 1 (uma pessoa contagiada  por infectado).

—  Imagina uma brasileira ligando para os portugueses, dizendo que é médica, pedindo dados, e as pessoas acreditando e enviando até documentos sem desconfiar? Não sei se isto seria possível no Brasil, onde soube que houve golpes por SMS. Eu uso meu número particular de celular para falar com as pessoas. Isto é prova da confiança da população no Sistema Nacional de Saúde (SNS) —  declarou Tammy, no país desde 2015.

Casos e mortes por Covid-19 em Portugal Foto: Editoria de Arte
Casos e mortes por Covid-19 em Portugal Foto: Editoria de Arte

Profissionais da saúde expostos

O prestígio do SNS também se recuperou na pandemia. Criticado pelos baixos salários e pela falta de funcionários, o sistema tem suportado a pandemia sem recorrer aos hospitais de campanha.

Mesmo assim, partidos de oposição pediram reforço de pessoal e recursos, e relatos de profissionais denunciaram falta de equipamentos. Mais de três mil trabalhadores da saúde foram infectados e, em março, eles constituíram 20%  dos casos de coronavírus.

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Estudo recente da Fundação Champalimaud indicou que o número de enfermeiros e auxiliares de enfermagem  infectados em dois hospitais no Porto e em Lisboa seria dez vezes maior. A Ordem dos Médicos informou que 47% dos médicos que tiveram contato com um caso de Covid-19 não foram testados. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Portugal é um dos países que mais fazem testes: até agora, já foram 490 mil.

A retomada da confiança no SNS, segundo Tammy, levou a população a acatar de imediato as recomendações da Direção-Geral da Saúde (DGS).

— No Brasil, o sistema público atende camadas mais pobres, enquanto em Portugal, 80% da população o utilizam, mais de 90% têm médico de família e confiam nas diretrizes. O SNS é mais organizado e digitalizado, todos os  exames  e receitas são transmitidos por mensagem ou e-mail. A estrutura facilita o nosso trabalho, o distanciamento social e impediu deslocamentos ao centro de saúde  — disse Tammy.

Integrante de uma equipe com mais quatro médicos brasileiros no Hospital Beatriz Ângelo, em Lisboa, a paulista Marina Leal Corbisier atua também, durante quatro horas diárias, no “covidário” do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, na capital. Em Portugal desde 2018, faz uma comparação com os 18 meses de trabalho em um hospital de São Paulo:

— Enquanto no Brasil eu recebia ameaças quando muita gente fingia estar doente e eu me negava a dar atestado, aqui as pessoas obedecem muito mais às regras. A quarentena bem respeitada e a estrutura para atendimento dos casos culminam nesta redução de óbitos e no aumento de recuperados.

No último boletim divulgado nesta segunda-feira pela DGS, o número de recuperados em 24 horas foi de 1.794, o maior registro desde o início da pandemia no país, em 2 de março, e um aumento de 38% em relação ao dia anterior. O índice de pacientes recuperados supera o de mortes desde 21 de abril. O total chegou a 6.430, seis vezes maior que o de óbitos (1.231). Houve seis mortes em 15 de maio, registro mais baixo desde 22 de março. O número de casos é de 29.209, mais 173 (0,6%) que no dia anterior.

O número pode ser ainda maior, porque 80% dos pacientes foram recuperados em casa e grande parte ainda não constaria nas estatísticas, mas a DGS afirma ter havido aumento de 90% de recuperados desde o início da primeira fase desconfinamento gradual, em 4 de maio. Um balanço mais preciso da evolução da doença na primeira quinzena de reabertura só será conhecido nos próximos dias.