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'Estamos diante de uma nova grande transformação', diz economista francês sobre impacto da pandemia

Para Pierre Salama, crise pode ser comparada à de 1929 e deverá fazer com que países ricos levem indústria estratégica de volta a seus territórios
Pierre Salama, economista francês Foto: Divulgação
Pierre Salama, economista francês Foto: Divulgação

PARIS — O motor do caminhão parou de repente, em noite escura, no meio da estrada deserta, e o motorista não sabe como fazer para buscar socorro. Esta seria uma metáfora para o desafio que se coloca diante do Ocidente em relação aos destinos da economia num mundo pós-Covid-19. Há os que estão convencidos de que recuperar o motor e seguir em frente está fora de cogitação. Entre eles, o economista francês Pierre Salama , que observa que o motor só sobreviverá se o caminhão mudar de percurso. Salama é professor emérito da Universidade de Paris 13 , ex-aluno do economista brasileiro Celso Furtado , e autor de livros focados nas economias da América Latina.

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Salama está convencido de que acabaram os dias de um sistema de globalização tal como foi praticado até agora e que o momento nos devolve ao fortalecimento do Estado. Ele antevê uma " nova grande transformação ", tal como a prevista para o pós-Segunda Guerra pelo economista austríaco Karl Polanyi (1886-1964), que em seu livro "A grande transformação", de 1944, tratou dos riscos de desestabilização provocados por mercados desregulados.

Já é possível medir o tamanho da crise provocada pela pandemia do coronavírus?

É uma crise espantosa. O modelo econômico das últimas décadas está desmoronando por causa de um vírus.  Isto expõe a vulnerabilidade extrema de um sistema assentado sobre uma globalização selvagem, capaz de provocar o colapso internacional de uma cadeia de valor com a perda de soberania sobre produtos essenciais. Países avançados na Europa, e também os Estados Unidos, se mostram incapazes de produzir bens essenciais como medicamentos e equipamentos hospitalares , assim como tantas outras coisas sobre as quais ontem tinham controle absoluto em seus territórios, mas que não foram previstas no mundo de amanhã. A pandemia não é um fenômeno econômico, mas paradoxalmente se torna, num contexto de quase estagnação. Está claro que a crise de hoje é muito mais importante que a de 2008. É uma crise estrutural, no mínimo do mesmo porte da de 1929. Será indispensável repensar a economia nas suas relações humanas e nas relações entre Estado e mercado.

Que estragos podemos inventariar?

A produção industrial foi bastante afetada , assim como a de serviços. A queda já chegou a uma média de 15% a 20% no mês. Há setores que simplesmente pararam de funcionar, como o turismo , a hotelaria , a restauração . Um peso enorme em termos de PIB, uma queda de 3 pontos nos 30 últimos dias. Isso quer dizer que todos os países europeus atingidos pela pandemia entraram em recessão. Do ponto de vista do mundo do trabalho, a situação difere de país a país. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego aumentou enormemente . Na França ela cresceu, mas bem menos, por conta das medidas de intervenção do Estado – o adiamento do pagamento de impostos e contribuições sociais de empresas em dificuldades e o financiamento dos salários dos empregados que não podem trabalhar à distância.

Alguns observam a crise da pandemia como um sinal de que o capitalismo entrou em fase terminal...

Já se dizia isso em 1914. A agonia do capitalismo é uma canção que todos conhecemos, mas ainda sobram muitos recursos. O capitalismo de 1914 não era o mesmo dos anos 1930, que também não era o mesmo dos anos 1950. O que é inquestionável é que estamos fechando um ciclo. Um novo ciclo vai se abrir ao final dessa pandemia e o capitalismo não será mais o que foi no ano passado, nele não cabe mais a globalização tal como foi praticada. Estamos diante de uma nova grande transformação, em favor da preservação dos bens públicos, dos bens comuns, que em tese vai exigir o controle dos cidadãos sobre a relação Estado-Mercado.

Vivemos também um deslocamento hegemônico, geográfico e geopolítico, do Ocidente para o Oriente, que vai repercutir sobre essas novas escolhas.

Ele já começou. O peso crescente da China data aproximadamente de 15 anos. Mas não tenho certeza de que esta forma de globalização tal como praticada até agora será reforçada nos países asiáticos. Estaremos diante de um novo sistema de relocalização industrial radical dentro dos países ocidentais, e as capacidades de intervenção da China serão bastante alteradas.

Muitos imaginam que a China está saindo da pandemia ainda com mais força.

Nada será como antes. A globalização já dava sinais de mudança de intensidade e forma com a aceleração da revolução tecnológica, a mesma que, por sinal, provocou a fragmentação internacional da escala de valor. Há anos se discute a “desglobalização”, tema do qual a extrema direita se apropriou em sua franca expansão nos países avançados, além da escalada de medidas protecionistas para responder aos efeitos sociais dos salários achatados, do desemprego em alta, da precariedade do trabalho, e das possibilidades cada vez maiores de relocalização “competitiva” com a inteligência artificial, a robotização, a impressora 3D e a uberização dos empregos. A força da China se concentrou na sua transformação em atelier do mundo. Este agora pode ser seu elemento de fraqueza. Se as relocalizações crescerem de maneira significativa visando os produtos de alta tecnologia, é pouco provável que a China saia fortalecida desta crise.

A pandemia evidenciou a precariedade de França, Itália e Espanha em termos de meio de combate à Covid-19. Não parece ter sido o caso da Alemanha. Quais os elementos mais importantes nessa correlação de forças?

A grande diferença entre a Alemanha e seus vizinhos é que ela não conheceu nos últimos 15 anos um processo de desindustrialização.  Pelo contrário, sua indústria se fortaleceu. Em termos de Produto Nacional Bruto, a indústria alemã produz o dobro da França. É enorme. O exemplo da indústria farmacêutica é gritante, porque a da França se deslocou enormemente. Oitenta por cento dos medicamentos vêm da Ásia, como consequência de uma espécie de transnacionalização das empresas francesas que permitiram produzir produtos de baixa qualidade, sem a excelência dos produtos alemães. É a conta que pagamos destes últimos 15 anos.

Seria esta a razão da falta do reagente que impede a aplicação de testes de triagem do coronavírus em massa num país tão rico como a França?

Sim, o reagente é importado. Como as máscaras de proteção respiratória.  E como os respiradores artificiais, que exigem o curare, que é fabricado na Ásia. É assim que se evidencia a perda de soberania sobre problemas estratégicos.

No seu pronunciamento de 16 de março, Emmanuel Macron falou de decisões de ruptura a tomar.  Falou do “bem precioso” de um sistema de saúde pública e universal que deve ser protegida do mercado, dentro do terreno da soberania nacional.  Assumiu explicitamente uma atitude de defensor do Estado social, que ele ajudou a enfraquecer nos últimos anos. Estamos diante de uma mudança de fundamentos ideológicos do presidente francês?

Não exatamente. Penso que o liberalismo está nos genes de Macron. Mas a palavra empenhada de Macron, é importante, porque legitima toda uma série de reivindicações da sociedade francesa, que exige pensar num outro tipo de capitalismo , no qual a soberania será bem mais importante e nem tudo implicará em lucro de ações no mercado. Nesse sentido, o engajamento de Macron não apenas legitima a intervenção do Estado, mas também se estende a um amplo espectro do tecido popular que deve controlar este Estado e que está no centro do debate democrático dos dias de hoje. Será que ele manterá a palavra? Se a crise for resolvida mais facilmente do que imaginamos, é possível que volte atrás. Mas estará também legitimada uma enorme pressão para que cumpra o que foi prometido.

A principal medida anticíclica aplicada na França e demais países europeus é a do desemprego parcial, o financiamento da remuneração dos assalariados que ficaram inativos por causa das medidas de isolamento. O financiamento francês é maior do que em outros países, de 80% dos salários.  Na Alemanha, ele é de 60%. O que leva a essa diferença de política?

O desemprego parcial obedece a uma lógica simples. É a forma de evitar que a maior parte dos trabalhadores seja demitida, para que a empresa possa conservar seu capital humano e amanhã ter condições de sair mais facilmente da crise. Segue também uma lógica social, porque um aumento significativo de desempregados pode significar uma quebra do seguro-desemprego.  O Reino Unido está financiando no mesmo nível da França. É verdade que a Alemanha adotou um critério mais austero, ainda que sendo um país mais rico, talvez imaginando reverter a pandemia mais facilmente, porque tem um sistema de prevenção mais eficaz. O problema é que a Alemanha é o país europeu que certamente mais irá sofrer com a crise da pandemia, porque é um país exportador e o comércio internacional está desmoronando. Essa estratégia terá que mudar.

Já existe um plano de nacionalizações na mesa do ministro da Economia. É eficaz?

Creio que é possível fazer algumas nacionalizações de recuperação em setores estratégicos, como é o caso da indústria farmacêutica , mas não muito mais além disso. As nacionalizações temporárias podem ser uma solução temporária. O mito da capacidade do Estado forte ainda persiste, mas não existem soluções milagrosas, o poder do Estado só deve ser exercido com o controle de seus cidadãos. Por outro lado, é preciso pressionar as empresas privadas para investirem mais no país. A medida mais acertada foi a de impedir o pagamento de dividendos. Não é possível pagar dividendos e ao mesmo tempo exigir ajuda do governo na isenção de impostos e no desemprego parcial.

O governo francês se comprometeu também com o adiamento dos impostos e das contribuições sociais das empresas durante o mês de março, mas as medidas de isolamento se prolongam até maio.  Por quanto tempo o Estado pode praticamente sozinho financiar a economia?

Não por muito tempo. Por isso o difícil acordo da União Europeia disponibilizando recursos de 550 bilhões de euros a seus países é um alívio a curto prazo.  Um caminho aberto sob o nevoeiro. É impossível prever o escopo da crise e quanto tempo ela vai levar. O fato de os países terem chegado a um consenso solidário é também um sinal positivo para a própria sobrevivência da construção europeia, que estava a um passo da implosão. O acirramento do discurso populista nacionalista de extrema direita está diretamente ligado à estagnação de projeto europeu, que precisa mudar radicalmente o rumo que tomou nestas últimas décadas.

A extrema direita que governa o Brasil tem características próprias, se comparada à europeia.  Não se pode chamar de nacionalista um governo subordinado aos Estados Unidos como o de Jair Bolsonaro, que aplica ao país um modelo econômico que a Europa está abandonando. Que cenário se pode prever para o Brasil no mundo pós-Covid-19?

Trágico. Ainda que o Brasil desejasse hoje aplicar medidas anticíclicas, como faz agora a Argentina, os estragos provocados até agora mal permitiriam atenuar a catástrofe. Querem evitar a todo preço o isolamento para salvar a economia, mas que economia se salva, quando não há mais homens para fazê-la funcionar? O Brasil tornou-se um laboratório inenarrável. Nas experiências de laboratório se usam animais. Um rato, uma picada; ele morre ou não. Mas não são ratos, são seres humanos. Se considerarmos a pandemia uma guerra, como fez Macron, Bolsonaro é um criminoso de guerra . Seu líder, Donald Trump, já mudou de posição e se apresenta agora como um guerreiro que combate o coronavírus. Bolsonaro perdeu sua hora.  Como se diz em francês, está a um trem de metrô atrasado na viagem.

*Elizabeth Carvalho é correspondente em Paris da GloboNews

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