Mundo

EUA assinam acordo com Talibã para retirar soldados do Afeganistão

Pacto abre possibilidade de encerramento sem vitória do mais longo conflito travado pelos americanos, mas cenário interno no país da Ásia Central continua incerto
O representante americano, Zalmay Khalilzad, e Abdul Ghani Baradar,cofundador do Talibã, apertam as mãos após assinarem o acordo de paz Foto: GIUSEPPE CACACE / AFP
O representante americano, Zalmay Khalilzad, e Abdul Ghani Baradar,cofundador do Talibã, apertam as mãos após assinarem o acordo de paz Foto: GIUSEPPE CACACE / AFP

DOHA — Os Estados Unidos assinaram neste sábado um acordo com o grupo fundamentalista afegão Talibã que prepara o cenário para o fim da guerra mais longa travada por Washington — o conflito de quase duas décadas no Afeganistão, que começou após os ataques do 11 de Setembro, deixou dezenas de milhares de mortos, atravessou três governos americanos americanos e deixou desconfiança e incerteza por todos os lados.

O acordo estabelece um cronograma para a retirada em 14 meses dos militares americanos do Afeganistão, o empobrecido país da Ásia Central que passou a simbolizar um conflito sem fim. A guerra, de certa forma, ecoa a experiência americana no Vietnã. Nos dois casos, a superpotência apostou fortemente na força bruta e depois se retirou com poucos resultados para mostrar.

Celina: Afegãs temem que o preço de um acordo entre EUA e Talibã seja a sua liberdade

Os esforços para instalar um sistema democrático no país e melhorar as oportunidades para mulheres e minorias estão em risco se o Talibã, que baniu meninas de escolas e mulheres da vida pública, se tornar novamente dominante. O grupo, que tem sua base entre os pachto, o maior grupo étnico do país, esteve no poder entre 1996 e 2001, depois do longo conflito que se seguiu à saída das forças da antiga União Soviética, em 1989.  Além disso, a corrupção ainda é galopante, as instituições são fracas e a economia depende fortemente da ajuda internacional.

O acordo assinado em Doha, no Qatar, depois de mais de um ano de negociações intermitentes que excluíram o atual governo do Afeganistão, apoiado pelos EUA, não é um acordo final de paz. No entanto, é visto como um passo para um acordo mais abrangente, que pode eventualmente acabar com a  guerrilha talibã e reincorporar o grupo à política institucional.

A guerra custou US$ 2 trilhões e matou 3.550 soldados dos Estados Unidos e dos países que apoiavam sua coalizão, além de dezenas de milhares de afegãos. A retirada das forças americanas —- cerca de 13 mil soldados —- depende do cumprimento dos compromissos assumidos pelo Talibã, incluindo o rompimento de laços com grupos terroristas internacionais como a al-Qaeda. Foi a proteção dada pelo governo do Talibã a Osama bin Laden, arquiteto dos atentados do 11 de Setembro, que levou os Estados Unidos a invadirem o país e derrubarem o governo do grupo em 2001.

Guga Chacra: Trump acerta em assinar acordo com terroristas  do Talibã?

O futuro do acordo assinado neste sábado também depende de negociações mais difíceis entre o Talibã e o governo afegão sobre o futuro do país. Autoridades americanas esperam um acordo de compartilhamento de poder e um cessar-fogo duradouro, mas ambas as ideias foram rejeitadas pelo Talibã no passado.

O governo de Donald Trump definiu o acordo como o cumprimento de sua promessa a americanos desconfiados de guerras que trazem perdas e trauma, mas nenhuma vitória.

Soldados do Exército dos EUA na base de tiro de Seprwan Ghar, no distrito de Panjwai, província de Kandahar, sul do Afeganistão, em junho de 2011 Foto: Baz Ratner / REUTERS
Soldados do Exército dos EUA na base de tiro de Seprwan Ghar, no distrito de Panjwai, província de Kandahar, sul do Afeganistão, em junho de 2011 Foto: Baz Ratner / REUTERS

No auge do conflito, mais de 100 mil soldados americanos ocuparam o Afeganistão, ao lado de dezenas de milhares de militares de cerca de 40 países, incluindo os da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a aliança militar ocidental.

A guerra durou tanto tempo — os primeiros mísseis atingiram o território afegão em 8 de outubro de 2001, e os primeiros soldados americanos chegaram em 19 de outubro — que muitos jovens soldados afegãos não se lembram de seu início.

— O futuro do Afeganistão deve ser determinado pelos afegãos — disse o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, na cerimônia em Doha. — O acordo entre os EUA e o Talibã cria as condições para isso.

A mesma mensagem foi dada por Trump na sexta-feira:

— Se o Talibã e o governo do Afeganistão corresponderem a esses compromissos, teremos um bom caminho para acabar com a guerra no Afeganistão e trazer nossos soldados para casa — disse Trump. — Esses compromissos representam um passo importante para uma paz duradoura em um novo Afeganistão, livre da al-Qaeda, do Estado Islâmico e de qualquer outro grupo terrorista que queira nos causar danos.

Desde o início das negociações, no final de 2018, as autoridades afegãs ficaram preocupadas com o fato de o Talibã ter impedido sua participação. Elas temiam que Trump retirasse seus militares do Afeganistão sem garantir nenhuma das condições que consideravam cruciais, incluindo uma redução na violência e uma promessa do Talibã de negociar de boa-fé com o governo.

Leia mais: Talibã sequestra 27 membros de grupo de paz no Oeste do Afeganistão

O principal negociador americano, Zalmay Khalilzad, assinou o tratado em nome dos Estados Unidos. O mulá Abdul Ghani Baradar, um dos vice-comandantes do Talibã, assinou pelo grupo. O secretário de Defesa americano, Mark T. Esper, estava em Cabul. Em um comunicado conjunto com o governo afegão, ele prometeu continuar financiando os militares afegãos. Se o Talibã não cumprir suas promessas, "os EUA não hesitarão em anular o acordo", disse Esper. O presidente afegão Ashraf Ghani, cuja reeleição no final do ano passado foi contestada pela oposição, pediu um momento de silêncio para os mortos nos últimos 18 anos.

O Secretário de Estado americano, Mike Pompeo, chega ao local de assinatura do acordo de paz com o Talibã neste sábado em Doha, no Catar Foto: Ibraheem al Omari/Reuters
O Secretário de Estado americano, Mike Pompeo, chega ao local de assinatura do acordo de paz com o Talibã neste sábado em Doha, no Catar Foto: Ibraheem al Omari/Reuters

O melhor, e também o mais incerto, cenário aberto pelo acordo deste sábado é o fim de um conflito que começou mais de 20 anos antes da invasão americana, quando as forças da então União Soviética invadiram o país para apoiar um governo aliado contra uma insurgência de grupos armados de base religiosa e sectária, que passaram a receber apoio de Washington.

Os talibãs comemoraram como uma vitória o fato de terem levado a maior superpotência militar a admitir sua retirada. "Este é o hotel que amanhã se tornará um hotel histórico", afirmou o chefe de Comunicações do grupo no Twitter na sexta-feira, ao postar uma foto do hotel em Doha em que o acordo foi assinado. "Aqui, será anunciada a derrota da arrogância da Casa Branca diante do turbante branco."

Leia também: Do Afeganistão a Soleimani, o avanço dos drones em ataques mortais dos EUA

Militates do Talibã afegão e civis sobem em veículo blindado do Exército Nacional Afegão, na província de Kandahar, no Sul do Afeganistão Foto: JAVED TANVEER / AFP/17-06-2018
Militates do Talibã afegão e civis sobem em veículo blindado do Exército Nacional Afegão, na província de Kandahar, no Sul do Afeganistão Foto: JAVED TANVEER / AFP/17-06-2018

O acordo prevê um cronograma condicional para a retirada dos soldados americanos restantes. Na primeira fase, cerca de 5 mil devem deixar o Afeganistão em 135 dias. A retirada dos demais, prevista para ser concluída em 14 meses, dependerá de o Talibã manter sua parte do acordado.

Os insurgentes prometeram romper com redes terroristas internacionais e proibir o uso do Afeganistão como base para ataques de grupos como a al-Qaeda. Mas, ao mesmo tempo, uma facção dominante do Talibã, a rede Haqqani, ainda está listada como uma organização terrorista por realizar uma campanha de atentados suicidas nas cidades afegãs. O líder da rede, Sirajuddin Haqqani, é o vice-líder do Talibã.

Os EUA se comprometeram a trabalhar pela  libertação de 5 mil prisioneiros talibãs mantidos pelo governo afegão antes de os dois lados começarem negociações diretas. Um cessar-fogo indefinido não foi incluído no acordo de modo explícito. Apesar de os americanos terem pressionado por isso, eles acabaram concordando com o que foi chamado de "redução da violência", que começou a ser testada há uma semana.

Nos últimos anos, soldados e policiais afegãos suportaram o peso dos combates, com um alto custo em baixas, enquanto o Talibã ganhou terreno. A disposição do grupo de negociar um acordo político provoca esperança e medo entre os afegãos. A esperança é que algum tipo de paz seja alcançada. O medo é de que o Talibã se veja encorajado pelo anúncio da retirada americana depois de anos de avanços militares.

As quase duas décadas de guerra foram devastadoras em termos humanos e econômicos, embora em muitos casos seja difícil encontrar números exatos. Apenas no último trimestre de 2019, o Talibã realizou 8.204 ataques, um recorde de dez anos para o mesmo período. Os Estados Unidos lançaram 7.423 bombas e mísseis durante o ano passado, um recorde desde que a Força Aérea começou a registrar os dados em 2006. Nos últimos cinco anos, mais de 50 mil integrantes das forças de segurança afegãs foram mortos. As perdas do Talibã são mais difíceis de verificar, mas acredita-se que sejam comparáveis.

Confira: Documentos mostram que governo dos EUA enganou propositalmente o público sobre a Guerra do Afeganistão

O governo de Barack Obama tentou buscar um acordo político com o Talibã anos atrás, pouco depois de aumentar o número de militares no Afeganistão, em uma tentativa fracassada de estabilizar o governo e enfraquecer a insurgência. Esses esforços, no entanto, não foram adiante. As autoridades envolvidas dizem que os lados civil e militar do governo americano discordaram sobre a necessidade de uma solução política, com os militares se recusando a aceitar que a força não poderia vencer a guerra.