RIO — Nas últimas semanas, a Argentina, que até agora teve 4.117 casos de contágios da Covid-19 e 207 óbitos, começou a discutir o dilema de como sair da rigorosa quarentena decretada pelo governo do presidente Alberto Fernández, em meados de março. Uma das primeiras medidas anunciadas, pela municipalidade de Buenos Aires, foi a exigência de que pessoas acima de 70 anos tivessem de solicitar autorização para circular. A reação de amplos setores da sociedade, que incluiu um manifesto de repúdio assinado por intelectuais, obrigou o governo portenho a recuar.
![Casos da Covid-19 na Argentina Foto: Editoria de Arte](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/24402354-f9f-11a/FT1086A/3004-OG-casos-argentina-web.jpg)
Uma das que protestaram publicamente foi a renomada escritora Beatriz Sarlo , que hoje observa com preocupação a situação de um país que é visto como modelo a seguir em matéria de combate à pandemia, mas que, ao mesmo tempo, está diante do difícil desafio de afrouxar sem provocar uma segunda e explosiva onda de infecções. As imagens de praças cheias em cidades da Espanha e Reino Unido, fim de semana passado, assustaram pessoas como Sarlo.
— Temo muito por esse momento, aqui na Argentina. O pior que poderia acontecer é que se optasse pela repressão para exigir o cumprimento de medidas de isolamento. Acho que isso não vai acontecer, mas, sinceramente, não sei como essa saída administrada será implementada — afirmou Sarlo em entrevista ao GLOBO.
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Quando o governo de Buenos Aires tentou impor a obrigatoriedade da permissão para sair a pessoas acima de 70 anos, a escritora falou em “ estado de sítio seletivo ”. Superado o conflito, hoje ela observa com enorme preocupação a confirmação de casos de coronavírus em grandes favelas portenhas, algumas localizadas a curta distância do centro da cidade. O mesmo medo paira sobre a Casa Rosada, onde um presidente que tem entre 50% e 70% de aprovação teme que os casos de coronavírus se espalhem nas regiões mais humildes do país.
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As pressões para avançar com o afrouxamento são fortes, porque a Argentina parou estando em recessão, que se arrasta há vários anos e em 2020 poderia levar o PIB a despencar mais de 6%. E tudo isso em meio a uma renegociação da dívida pública de final incerto, que poderia desencadear um novo calote.
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O Executivo estendeu a quarentena até 10 de maio , mas nada garante que não haja uma nova prorrogação. Até lá, em muitas cidades os argentinos foram autorizados a sair uma hora por dia e afastar-se, no máximo, 500m de suas residências. A pergunta que não quer calar é como controlar isso.
— O que estamos vivendo é como um jogo de futebol no qual um time faz um gol no primeiro tempo, fica com vantagem e precisa manter essa vantagem até o final. Estamos entrando no segundo tempo, e começa aquela tensão pelo risco de perder o que já foi conquistado — afirmou o sociólogo Santiago Canevaro , pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas e professor da Universidade de San Martín.
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Ele acredita que a Argentina deverá sair gradualmente da quarentena, porque o governo já deixou claro que não permitirá que a curva de contágios dispare. A essência do peronismo original e sua preocupação pelos mais pobres, destacou Canevaro, está mais forte do que nunca.
— O problema é que o tempo passa e as pessoas estão começando a ficar nervosas, embora o governo tenha adotado medidas para evitar uma deterioração da economia — alertou o sociólogo.
Rebelião tributária
Nas redes sociais, principalmente WhatsApp, circulam vídeos que pregam uma rebelião tributária. Pequenos e médios comerciantes defendem a suspensão de todos os pagamentos fiscais, como única alternativa para não falir. Empresas estão suspendendo trabalhadores e cortando salários. Inquilinos estão deixando de pagar ou exigindo reduções drásticas. E, assim, todo o capital político acumulado por Fernández começa a correr o risco de ser derrubado pelo colapso da economia.
— A grande pergunta que todos os analistas nos fazemos é como Fernández será avaliado quando tudo isso terminar. A questão econômica vai aparecer na agenda, a economia precisará começar a ser reativada. Não sabemos se as pessoas entenderão isso como uma consequência lógica da pandemia, ou se culparão o governo — opinou Diego Reynoso, da Universidade de San Andrés.
No país famoso pela tradição psicanalista, o ambiente nos consultórios é de angústia e preocupação, contou a psicóloga Adriana Guraied. Nas primeiras semanas da quarentena, disse ela, os pacientes apoiaram, entenderem e conseguiram se adaptar à situação. Nas últimas, os sintomas de ansiedade e depressão aumentaram de forma expressiva.
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Seu colega Miguel Espeche avalia que “sair deste tipo de quarentena requer medidas muito rígidas” e que o estresse acumulado é muito grande.
— Começamos a falar em economia, e economia também é saúde. Trata-se de nossa forma de vida, de nossa sobrevivência. Muitas pessoas temem perder a vida que tinham, é importante que esta saída seja bem planejada — frisou.
Ele vê a Argentina como “um animal selvagem que foi enjaulado e agora precisa ser solto”.
— Isso é muito complicado, porque o vírus está entre nós e continuará aqui até que exista uma vacina — acrescentou Espeche.
Libertação de detentos
Uma das últimas medidas do governo que causou polêmica foi a liberação de presos por motivos sanitários, incluindo a concessão de prisão domiciliar para militares condenados por crimes da última ditadura (1976-1983). Foram organizadas campanhas de coleta de assinaturas digitais para exigir a revogação da iniciativa, mas a resposta do presidente, ainda sustentado por um alto índice de popularidade, foi enfática:
— A Argentina, como o mundo todo, enfrenta uma pandemia de enormes proporções. O risco de contágio se potencializa em lugares de muita concentração humana, o que torna as prisões âmbitos propícios para a expansão da doença.
Assim como recusou-se a baixar os salários de funcionários e políticos, Fernández se manteve firme em sua posição, enquanto avalia junto a uma equipe de epidemiologistas como fazer a tão promovida “saída organizada” da quarentena.