Mundo Guerra na Ucrânia

Guerra na Ucrânia tem duro impacto na África, trazendo risco de aumentar fome e instabilidade social, alertam FMI e ONU

Aumento do preço de alimentos gerado pela invasão russa enfraquece a recuperação econômica da África Subsaariana, o que deve elevar taxas de pobreza e aumentar o número de pessoas sem ter o que comer
Uma mulher compra comida em um mercado em Freetown, capital da Serra Leoa, onde os preços dos produtos básicos aumentaram desde a pandemia da Covid e a invasão da Ucrânia pela Rússia Foto: Saidu Bah / AFP / 6-4-2022
Uma mulher compra comida em um mercado em Freetown, capital da Serra Leoa, onde os preços dos produtos básicos aumentaram desde a pandemia da Covid e a invasão da Ucrânia pela Rússia Foto: Saidu Bah / AFP / 6-4-2022

O continente onde cerca de metade dos países se negou a condenar a invasão da Rússia na Ucrânia durante a Assembleia Geral da ONU no início de março foi atingido por um choque econômico justamente por causa da guerra, acarretando um forte aumento no preço dos alimentos que irá não apenas jogar mais pessoas na catástrofe da fome, como elevar as taxas de pobreza e intensificar as chances de agitação social. O alerta vem do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da ONU.

O conflito, segundo informações de um relatório do FMI divulgado na quinta-feira e outro da ONU em meados do mês, é uma rasteira na população da África, especificamente na região subsaariana, que experimentou uma recuperação promissora no segundo semestre de 2021 — agora foi enfraquecida pela guerra.

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"Os efeitos da guerra terão consequências profundas, deteriorando os padrões de vida e agravando os desequilíbrios macroeconômicos", escreveram Abebe Aemro Selassie, diretor do Departamento de África do FMI, e Peter Kovacks, economista na Divisão de Estudos Regionais do Departamento de África do FMI.

A decisão de muitos países africanos em não condenar na ONU a invasão russa — apenas a Eritreia foi contra, enquanto 17 se abstiveram e outros oito estavam ausentes — apesar de não ter uma explicação única e simples, pode ser de certa forma entendida por motivos de naturezas distintas, seja por alguma afinidade histórica, por receber mercenários russos ou por realizar negócios com Moscou. O que é certo é que, de maneira indireta, a invasão russa na Ucrânia prejudicou ainda mais o continente.

O Programa Mundial de Alimentos da ONU já havia estimado que, se a guerra durar até depois de abril, haverá um aumento global da fome em 17%. A região mais afetada seria justamente a África Subsaariana, com mais 30 milhões de pessoas passando fome nesses países, de um totali de 174 milhões.

No continente, 41 países — ou mais de 70% da África — estão "severamente expostos" a pelo menos uma emergência — alimentar, energética ou financeira — causada pela guerra, segundo o relatório da ONU "Impacto global da guerra na Ucrânia nos sistemas de alimentação, energia e finanças", lançado em meados de abril.

Diante da situação, a ONU anunciou nesta sexta que o secretário-geral, António Guterres, visitará o Senegal, o Níger e a Nigéria, na África Ocidental, entre sábado e quarta-feira para pôr em perspectiva as consequências no continente da invasão russa na Ucrânia.

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Muitos países no continente africano dependem da Rússia e da Ucrânia em uma fatia significativa de importações de produtos ligados à agricultura, como trigo, fertilizantes e óleos vegetais, mas a guerra afetou os mercados globais de commodities, elevando o preço de alimentos na África. Até países que importam pouco de Moscou e Kiev foram impactados.

Agora, com um "choque econômico global" gerado pela invasão russa, um relatório regional produzido pelo FMI mostrou que a recuperação econômica na África Subsaariana foi revisada no ano passado e subiu de 3,7% para 4,5%, mas agora a guerra introduziu "um novo e trágico desenvolvimento", com uma diminuição da projeção para 3,8% este ano.

Segundo o documento, "os temores pela segurança alimentar aumentaram claramente" e a explosão dos preços dos alimentos faz crescer "os riscos de agitação social" em países vulneráveis da região. "O progresso foi prejudicado pela invasão russa da Ucrânia", disse o FMI.

O relatório pontua que, se por um lado os preços mais altos do petróleo podem gerar um ganho inesperado para os oito exportadores da África Subsaariana, isso irá piorar os desequilíbrios comerciais e aumentar os custos nos outros 37.

O FMI também disse que aumentou as projeções de inflação, "elevando a média regional para 2022 em 4 pontos percentuais, representando o pior resultado desde 2008. Este ano, 11 países enfrentarão inflação de dois dígitos; quase todos têm taxas de câmbio flexíveis e quase metade deles são frágeis".

A despeito da recuperação na África antes da guerra, isso não significa que todos aproveitavam um momento melhor. Pela África Oriental, o nível de chuvas abaixo da média criou uma das maiores secas em quatro décadas, segundo a ONU, deixando 13 milhões de pessoas passando fome.

Em Baidoa, na Somália, pessoas esperam por água em um dos 500 campos para deslocados internos na cidade. Milhões de pessoas no país correm o risco de passar fome, sendo as crianças as mais vulneráveis diante do agravamento da seca Foto: Yasuyoshi Chiba / AFP / 13-2-2022
Em Baidoa, na Somália, pessoas esperam por água em um dos 500 campos para deslocados internos na cidade. Milhões de pessoas no país correm o risco de passar fome, sendo as crianças as mais vulneráveis diante do agravamento da seca Foto: Yasuyoshi Chiba / AFP / 13-2-2022

Os problemas citados anteriormente, porém, não se limitam à África Oriental. Países de outras regiões do continente, como Angola, Nigéria e Camarões, já lutavam com o aumento galopante do preço de alimentos por causa do aquecimento global e eventos climáticos, como enchentes, deslizamentos de terra e secas, além da pandemia de Covid-19. Tudo isso, somado a uma instabilidade política seguida de uma série de golpes militares e à violência armada em diferentes partes do continente.

Na Somália — onde o preço de um recipiente de 20 litros de óleo de cozinha saltou de R$ 158 para R$ 271 — analistas alertam que a seca e a escassez de comida gerada pela guerra na Ucrânia ainda viabilizam ao al-Shabaab, grupo terrorista que controla partes do país, uma oportunidade de recrutar novos membros, principalmente pessoas com pouco ou nenhum acesso a algum tipo de ajuda governamental.

O relatório do FMI ainda destaca que a segurança alimentar "já é uma questão crítica em todo o Sahel, na República Democrática do Congo e em Madagascar" e que um maior aumento dos preços de comida "irá prejudicar os mais vulneráveis".

David Laborde Debucquet, pesquisador sênior do Instituto Internacional de Pesquisa em Política Alimentar, disse que é necessário ajudar "alguns países no curto prazo a pagar sua conta de importação e também alguns países a implantar uma rede de segurança social que protegerá seus consumidores pobres", chamando a atenção para a palavra "direcionamento".

— Você não precisa reduzir o preço dos alimentos para todos em todos os lugares. Se você é de uma família rica em economias avançadas ou mesmo na África, você se ajustará ao aumento dos preços dos alimentos. Agora, se você é de uma família pobre no Chifre da África, você já gasta 80-90% de sua renda diária em comida, então você realmente não tem margem para ajuste exceto comer menos — afirmou Debucquet a um podcast do Fórum Econômico Mundial. — Esse é um tipo de nuance que precisamos ver.