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Há 1 mês no poder no Chile, Boric tem problemas para governar, e Congresso pode aprovar saques da aposentadoria à sua revelia

Jovem presidente não consegue disciplinar base e enfrenta inflação alta após a pandemia, enquanto popularidade diminui
O presidente do Chile, Gabriel Boric, durante uma visita a Buenos Aires na primeira semana de abril. Ao seu lado, o chanceler da Argentina, Santiago Cafiero Foto: MARIANA NEDELCU / REUTERS
O presidente do Chile, Gabriel Boric, durante uma visita a Buenos Aires na primeira semana de abril. Ao seu lado, o chanceler da Argentina, Santiago Cafiero Foto: MARIANA NEDELCU / REUTERS

Há pouco mais de um mês no poder, o jovem presidente do Chile, Gabriel Boric, de esquerda, confronta-se com os desafios de governar. Os deputados chilenos vão votar nesta segunda-feira dois novos projetos que autorizam um quinto saque pelos chilenos das poupanças de suas aposentadorias. O governo se opõe à retirada, mas enfrenta dificuldades para disciplinar os deputados de sua coalizão, enquanto setores da oposição de direita, que eram contrários às retiradas quando estavam no poder, agora se mostram a favor delas.

A sessão plenária, marcada para esta tarde naquele que promete ser um longo dia na Câmara chilena, testa a capacidade de articulação política do governo e pode ter repercussões significativas sobre a economia chilena.

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Após assumir no dia 11 de março, Boric viu sua popularidade diminuir significativamente, em um país que vive grande instabilidade desde outubro de 2019, com forte descrédito da classe política.

A Frente Ampla, partido de Boric, apoiou quatro iniciativas de retirada parcial durante o governo do ex-presidente de direita Sebastián Piñera, e o próprio presidente as endossou quando era deputado. Agora, no entanto, alega que a medida terá efeitos sobre a inflação, sobre a sustentabilidade do sistema previdenciário e sobre a recuperação econômica do país.

A atual iniciativa dos legisladores busca que os contribuintes possam sacar mais 10% de suas economias previdenciárias sem condições. A proposta foi rejeitada nesta segunda na Comissão de Constituição da Câmara, mas a votação não é vinculante e pode ser revista pelo Plenário.

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Para se contrapor à medida e minimizar danos, o governo interveio e apresentou seu projeto alternativo, por meio do ministro da Fazenda, Mário Marcel. Ele foi presidente do Banco Central até o último mês de março, e, no cargo, se opôs firmemente às medidas. A proposta do Executivo limita o acesso aos recursos para pagamentos de pensão alimentícia, de hipotecas, de contas como água e luz e outras dívidas que, segundo o governo, não gerariam efeito inflacionário.

O ministro Marcel afirmou que outro uso saque de “disposição livre”, como a iniciativa proposta pelos deputados, colocaria em risco o programa do governo.

— É muito diferente pensar em grandes reformas, como as tributárias, previdenciárias e de saúde, em um contexto de inflação crescente e de instabilidade financeira — disse o ministro, em entrevista à Rádio Infinita.

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A inflação chilena atualmente está em cerca de 10%. Em uma exposição na semana passada na Comissão da Câmara contra os saques, a presidente do Banco Central, Rosanna Costa, afirmou que, se os saques ocorrerem, ela pode chegar a 15% até meados do ano.

Embora o projeto do governo seja mais limitado, ainda assim é incerto que não vá ter efeitos inflacionários. Economistas dizem que, mesmo se forem usados para pagar dívidas, ainda assim permitirão que os chilenos utilizem outros recursos — que, de outra forma, seriam usados para as dívidas — para aumentar o consumo.

“Naturalmente, isso é menos prejudicial do que uma retirada total da pensão, mas aumenta a renda disponível e pode ter algum impacto na demanda e na inflação”, disse o Bank of America em um relatório recente.

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Além da inflação, o governo sustenta que, com um novo saque, mais de 5,8 milhões de pessoas ficariam sem poupança em seus fundos, o que representa 46% do total. Boric classificou esta política como “pão para hoje, fome para amanhã”.

Para justificar a sua oposição à iniciativa, em contraste com os apoios anteriores, o governo argumenta que a economia já conseguiu se recuperar e a crise da saúde foi controlada.

A iniciativa parlamentar precisa de 93 votos para ser aprovada, enquanto o projeto do Executivo exige apenas maioria simples, isto é, 78 votos. Segundo o jornal chileno La Tercera, cálculos preliminares indicam que os 93 votos podem ser alcançados e o projeto dos deputados pode passar.

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Na centro-esquerda, o bloco do Socialismo Democrático — que é formado por Partido Socialista (PS), Partido pela Democracia (PPD) e Partido Radical (PR), todos com representação no governo — não conseguiu fechar questão para determinar o voto de seus deputados.

Na direita, por sua vez, a União Democrática Independente (UDI) — antes severamente contrária aos saques — pode dar até 23 votos favoráveis ao projeto caso o governo não apresente um projeto de reforma da Previdência que cumpra com a sua demanda.

A UDI exige que, em sua proposta de reforma, o governo garanta que os recursos guardados pelas poderosas Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs) pertençam aos trabalhadores e não podem ser confiscados pelo governo, como por exemplo para financiar um novo sistema previdencário. Minutos antes da sessão para debater as retiradas, o governo apresentou no Congresso uma proposta de reforma constitucional assegurando que os fundos não serão expropriados.

Pacote de ajuda ofuscado

A discussão sobre os saques ofuscou parcialmente o recente anúncio oficial de um pacote de ajuda de US$ 3,7 bilhões (R$ 18 bilhões) para apoiar diferentes setores econômicos que ainda sentem impactos da pandemia. O plano é composto por 21 medidas, incluindo projetos para a geração de empregos, ajuda econômica para pequenas e médias empresas e para famílias chilenas.

A atividade econômica no Chile, o maior produtor de cobre do mundo, se recuperou rapidamente, apoiada por enormes auxílios estatais e também pelas retiradas parciais anteriores da economia, que estimularam o consumo, enquanto criavam forte pressão sobre os preços.

Segundo o Bank of America, o ritmo da retomada vem diminuindo nos últimos meses, o que aumentará a pressão na coalizão governista para expandir os gastos públicos, apesar de a inflação já estar alta.

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Boric, de 36 anos, elegeu-se em dezembro do ano passado, com promessas de expandir a rede de proteção social chilena e promover ambiciosas reformas. Uma pesquisa Pulso Ciudadano, do instituto Ativa, apontou que, na primeira quinzena de abril, o presidente teve uma rejeição de 51%, um aumento de 10 pontos percentuais, enquanto a sua aprovação ficou em 27,8%, uma queda de 6,2 pontos em relação ao levantamento anterior.

Em seus primeiros dias no cargo, Boric tinha um índice de aprovação de 46,5% de acordo com esta pesquisa. A pesquisa Plaza Pública da empresa Cadem, por sua vez, disse que a reprovação de Boric subiu nove pontos percentuais, chegando a 50%, enquanto seu apoio caiu quatro pontos, passando a 40%.

O primeiro mês de Boric no cargo foi turbulento. Além das discussões sobre a economia e a inflação, a Ministra do Interior, Izkia Siches — que, até a campanha da eleição, não tinha experiência com política partidária — apresentou a uma comissão parlamentar informações errôneas sobre a gestão migratória do governo do ex-presidente Sebastián Piñera.

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Siches afirmou que durante o mandato de Piñera um avião retornou ao Chile com os mesmos passageiros que haviam sido expulsos do território chileno para a Venezuela. Horas depois, a ministra precisou ratificar a sua informação, sob severas críticas da oposição.

É crescente o ceticismo de que o governo, que elegeu-se com altas expectativas , mas não conta com maioria parlamentar e tem uma base fragmentada, composta em parte por setores radicais da esquerda, vá conseguir levar adiante seus ambiciosos projetos de reforma.

Enquanto isso, a Convenção Constitucional do Chile, responsável por escrever uma nova Carta Magna para o país, vive momentos decisivos. Nas próximas três semanas, o Plenário da Constituinte precisa votar mais da metade das normas que estarão na Constituição. A data provável para o encerramento das votações é 6 de maio.

A partir de 17 de maio, a Carta passa para a Comissão de Harmonização, responsável por deixar o texto coerente. Para tornar-se válida, a Constituição precisará ser aprovada por um plebiscito popular, marcado para 4 de setembro, de votação obrigatória.

Sob intenso escrutíinio midiático, problemas de organização e prazos curtos, a nova Constituição também enfrenta problemas de popularidade. O Pulso Ciudadano indicou que 36,8% dos consultados votariam pela rejeição do texto, contra 32,2% que o aprovariam. O Cadem mostrou preferências semelhantes, com 45% inclinando-se para a opção de rejeitar o novo texto, contra 38% a favor da aprovação.