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'Há pessoas demais que, pela palavra, recorrem à violência', diz sobrevivente de ataque ao Charlie Hebdo

Philippe Lançon estava na redação da revista quando ela foi atacada por terroristas; escritor relata em ‘O retalho’ a tragédia que deixou 12 mortos e sua recuperação
Philippe Lançon diz ter dificuldade de esquecer tudo o que aconteceu e ter a “constante impressão de que uma catástrofe vai cair sobre sua cabeça” Foto: Mollona / Agência O Globo
Philippe Lançon diz ter dificuldade de esquecer tudo o que aconteceu e ter a “constante impressão de que uma catástrofe vai cair sobre sua cabeça” Foto: Mollona / Agência O Globo

PARIS — Na manhã de 7 de janeiro de 2015, Philippe Lançon só foi perceber o que lhe ocorrera quando vislumbrou na tela de seu celular o reflexo de sua face desfigurada: um quarto de seu rosto, na parte inferior, se transformara, segundo sua própria descrição, em uma "cratera de carne destruída e pendente", mostrando a nu o que restava de gengivas e dentição, fazendo-o parecer "um monstro". Lançon foi um dos sobreviventes do atentado jihadista protagonizado pelos irmãos Chérif e Saïd Kouachi na redação do jornal francês Charlie Hebdo , em Paris.

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As balas disparadas pelos fuzis Kalachnikov dos terroristas, que arrancaram sua mandíbula, causaram um total de 12 mortes e 11 feridos. Em meio ao banho de sangue e aos corpos inertes de seus colegas de jornal, ele só se salvou porque se fingiu de morto. A tragédia e seu longo período de "construção pessoal" e de "reconstrução física" - com nove meses de internação hospitalar e mais de 20 cirurgias ao longo de dois anos -, são narrados minuciosamente nas 464 páginas de "O retalho", lançado agora no Brasil pela editora Todavia. Elogiada pela crítica por sua qualidade literária e a força de sua narrativa, a premiada obra já vendeu mais de 570 mil exemplares na França e foi traduzida para 19 idiomas. A filósofa Chantal Thomas, que presidiu o júri do prêmio Femina, que lhe foi conferido, definiu o livro como "ao mesmo tempo um formidável exercício de sobrevivência e uma obra de sabedoria íntima que vale para cada um". Hoje, Lançon continua escrevendo suas crônicas para o Charlie Hebdo e também suas críticas literárias, artísticas e teatrais para o jornal Libération.

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O encontro marcado para a conversa, em um café parisiense, fora inicialmente adiado por ele via um email, enviado às 7h37, informando que havia passado a noite em claro com fortes dores na mandíbula e teria de ir ao hospital. "Meu lábio inferior e meu queixo praticamente não têm músculos. Minha mandíbula foi reconstruída com meu perônio, por meio de implantes. É uma aventura que já dura três anos, e vou para minha terceira prótese", contou, quando a entrevista pôde ser realizada, lembrando que as constantes dores o impedem de esquecer o que passou.

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O senhor acusa a falta de solidariedade ao Charlie Hebdo na polêmica envolvendo as publicações de caricaturas de Maomé, isolando o jornal e designando-o como um alvo para os jihadistas, o que seria uma vergonha profissional e moral...

Pode-se pensar que teria ajudado se outros jornais franceses, em nome da liberdade de expressão, que é essencial neste país, tivessem decidido publicar as caricaturas de Maomé por princípio, sem mesmo saber se eram boas ou más. Charb, o diretor do jornal (vítima do atentado), me disse um dia que as considerava, em sua maioria, ruins. Mas não era essa a questão. Gosto é uma questão pessoal, e os princípios, não. É certo que o fato de termos sido os únicos a publicá-las, nos designou como alvos dos jihadistas. Houve uma falta de coragem para alguns, e, para outros, um erro de análise. O problema é que continuamos no mesmo ponto. Há uma reticência, principalmente na esquerda, de falar da questão do Islã e do islamismo, porque na França isso cruza com a questão do racismo. É um país que tem uma história singular e difícil com os argelinos, um povo que a França colonizou de uma forma violenta. Há uma parte da população na França que tem pulsões racistas muito fortes. E é muito difícil para a esquerda criticar uma religião que é majoritária em uma população que estima oprimida. Isso se choca com o princípio da liberdade expressão. Há uma parte da esquerda que diz que não se pode falar mal do Islã no contexto atual. Trabalho em dois jornais, Libération e Charlie, que se colocam em profundo desacordo. Charlie tem uma linha anticlerical e de liberdade de expressão. No Libération, existe algo como "não se fala mal do Islã, porque seria falar mal dos árabes em um país que já é racista".

Na sua opinião, Charlie, hoje, está novamente só?

É um jornal que sempre se apoiou em valores que, em resumo, vêm da esquerda dos anos 1960-70, libertários, anticlericais, e que hoje são questionados pela explosão de discursos minoritários. E trata-se de um jornal que sempre lutou para que todas as minorias pudessem se exprimir e pudessem ter o direito à palavra pública. É algo curioso o que ocorre hoje, porque minorias estão ameaçando a liberdade de expressão, querendo impedir de se exprimir todos aqueles que não estão de acordo com elas. Isso é um problema. São pessoas cada vez mais intolerantes.

O senhor critica um mundo de hoje de "enfrentamentos binários" que se torna "irrespirável"...

Sou o último a querer proibir algo, e Deus sabe quantos discursos ouço que me desgostam. Se tenho a possibilidade, respondo, ou então decido simplesmente ignorar. Mas penso que, hoje, é como se as pessoas tivessem o gosto de sangue na boca.

Após seus sofrimentos por causa do atentado, o senhor diz que passou a escrever com menos sarcasmo e mais ironia. Por quê?

Penso que a agressividade, própria do sarcasmo, era ligada a uma certa displicência. Hoje, sou, talvez, menos negligente e menos agressivo. Passei a dar uma maior atenção à forma. Se tenho críticas, procuro fazê-las passar mais pela ironia e menos pelo sarcasmo. Isso não quer dizer que me tornei mais complacente. Mas, talvez, escreva menos hoje sobre coisas das quais não gosto. E quando o faço, tento fazê-lo pela ironia, de uma maneira menos diretamente agressiva. Talvez também esteja com menos energia, ou que a utilize, hoje, diferentemente, sem me deixar irritar por temas que, no final das contas, não são tão importantes.

O senhor define seu livro como "radicalmente não violento", e diz que não pode suportar a violência de hoje com todos os discursos que a acompanham.

Penso que, hoje, há pessoas demais que, pela palavra, recorrem à violência, e se excitam com isso de uma forma extremamente desagradável. Há governantes neste planeta – e vocês sabem algo disso no Brasil – que são os piores exemplos que se podem dar às populações neste sentido. Um político deveria ser exemplar, mas temos exemplos terríveis de pessoas que só fazem agravar o mal que os produziu.

Tudo o que está no livro é real, mas o senhor diz que, por vezes, tem a impressão de viver uma ficção...

A partir do momento em que construo e escrevo uma narrativa, mesmo que seja a partir de algo que ocorreu, não deixa de ser um ato de imaginação. Outros que viveram uma situação similar escreveriam de uma outra forma. Alguém poderia começar contando logo o atentado. Acharia isso vulgar. Para mim, isso não estaria em conformidade com o que gostaria de fazer o leitor sentir, ou seja, como uma vida que sofre uma reviravolta e se metamorfoseia. E, muitas vezes, eu mesmo tive a sensação de que estava vivendo uma ficção, tanto as coisas eram inesperadas e quase inacreditáveis.

Nada esquecer de tudo que se passou era, para o senhor, algo decisivo para a “vida dos mortos” como para a continuação de sua própria existência. Por quê?

Para poder continuar a vida de outra forma, e aceitar em permanência novas surpresas, era preciso sair desta história. Para mim, a única maneira era escrevendo-a, com a memória e, para a forma, a imaginação. Só assim poderia passar a outra coisa, o que acabou ocorrendo. Foi uma experiência determinante para mim, pois transformou minha vida. Mas também foi determinante para a coletividade francesa, e faz parte de uma série de atentados, que começou em 11 de setembro de 2001, que marcou a consciência de todo mundo. Ocorreu de estar no centro de um destes atentados, e não esquecê-lo e poder restituí-lo era algo muito importante para mim.

O senhor diz ter se tornado quatro pessoas: o homem que existia antes do atentado – embora uma parte dele tenha desaparecido -, o que viveu a tragédia, aquele que relembra o que aconteceu, e o que conseguiu superar. Como é isso hoje?

A única coisa que sobreviveu de tudo foi a minha atividade: continuo a escrever artigos. Para o resto, muita coisa mudou. Tenho muita sorte na minha nova vida, a começar pelo sucesso deste livro. Mas ainda tenho dificuldade em me convencer de que não se trata de um sonho. E tenho dificuldade de esquecer o que se passou, no sentido de pensar que um dia vou acordar e estar novamente no hospital, no dia seguinte ao atentado. Tenho a constante impressão de que uma catástrofe vai cair sobre minha cabeça. É um sentimento que está presente todo o tempo, mas não de forma dramática, como algo tranquilo.

Em 13 de novembro de 2015, o senhor estava em Nova York, com sua namorada, Gabriela, quando soube do ataque terrorista no Bataclan, em Paris. O que sentiu naquele instante?

Tinha o sentimento de me ter distanciado do lugar da tragédia, Paris. E, de repente, Paris havia me achado onde estava, em Nova York. Não importa onde estivesse, a tragédia estava ali, ao meu lado, como se tudo recomeçasse.