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Imigrantes brasileiros nos EUA formam redes de proteção durante pandemia da Covid-19

Crise do coronavírus fez desemprego disparar e estrangeiros sem documentos não podem se beneficiar de auxílio do governo americano; mesmo legalizados sofrem com economia em queda
A brasileira Marcia Pretto, moradora de Massachusetts, organizou um coletivo de costureiras para produzir máscaras de proteção Foto: Acervo pessoal / Agência O Globo
A brasileira Marcia Pretto, moradora de Massachusetts, organizou um coletivo de costureiras para produzir máscaras de proteção Foto: Acervo pessoal / Agência O Globo

WASHINGTON E LAUREL, EUA — Ana Carolina, Sandro, Márcia, Franklin. São personagens brasileiros, mas com histórias longe do país no qual nasceram. Eles vieram do Brasil para os Estados Unidos , alguns deles há mais de dez anos. Fizeram a vida e agora, ao lado de outros milhões de imigrantes e americanos, enfrentam o que o presidente Donald Trump chamou de “a maior mobilização nacional desde a Segunda Guerra Mundial”: a luta contra o coronavírus .

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Com a chegada da pandemia aos EUA, o desemprego disparou. Mais de 20 milhões de americanos perderam o emprego no último mês. O governo negociou com o Congresso um pacote de mais de U$ 2 trilhões que inclui ajuda aos americanos, inclusive pagamentos de U$ 1.200 por pessoa.

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Mas o bônus não atinge os imigrantes sem documentos, caso de boa parte dos brasileiros. Muitos viram sua renda despencar sem ter como recorrer ao governo. Mesmo os legalizados sofrem o impacto da desaceleração econômica abrupta. Com dificuldades para pagar contas e medo de serem despejados, alguns já pensam em voltar para o Brasil.

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Os imigrantes são também mais atingidos pela Covid-19. Segundo dados da prefeitura de Nova York, o número de mortos pelo novo coronavírus em relação à população é proporcionalmente maior entre latinos e negros.

Apesar das dificuldades, muitos desses brasileiros estão entrando na linha de frente do combate ao vírus. Eles trabalham como enfermeiras e médicos em hospitais, entregadores em mercados, e criam redes de solidariedade para lidar com a crise inédita na saúde e na economia do país mais rico do mundo.

Sem trabalho e comida

A Páscoa deste ano foi diferente para o pastor Sandro Braun. Ao invés do culto presencial, a Igreja Adventista do Sétimo Dia comandada por ele em Maryland fez uma transmissão pelo Facebook. Para o domingo, organizou um drive-thru de distribuição de cestas básicas aos imigrantes afetados economicamente pela crise do coronavírus.

Quase 70 cestas foram preparadas. O número, acreditava o pastor, seria suficiente para atender aos brasileiros que viram sua renda despencar de uma hora para a outra. Não foi. Mais de cem carros passaram abrindo os porta-malas para voluntários de máscaras deixarem caixas com comida, itens de higiene e chocolates. Latinos de outras origens e até duas famílias de americanos apareceram. Voluntários anotaram os nomes dos que ficaram sem nada.

— Liguei e perguntei: "Vocês precisam para hoje mesmo ou podem esperar?". Alguns disseram: "Infelizmente, é para hoje mesmo" — conta o pastor, que chegou a receber uma foto de uma geladeira quase vazia para mostrar a necessidade.

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Todos com quem o pastor conversou perderam emprego ou parte dos salários por causa do coronavírus. Muitos imigrantes trabalham com limpeza ou jardinagem, serviços suspensos por causa da pandemia.

Quase 1,5 milhão de brasileiros vivem nos EUA, segundo o Itamaraty. As duas maiores comunidades ficam na Flórida e em Massachusetts: cerca de 350 mil em cada. O especialista em imigração Leonardo Freitas, do escritório de advocacia Hayman-Woodward, diz que alguns pensam em voltar:

— Muitas pessoas nos procuraram para fazer o retorno ao Brasil, cancelar seus greencards, porque não querem ficar com o vínculo nos EUA. Pessoas até com filhos americanos, mas que não têm condições de encontrar um trabalho neste momento.

É o caso de Franklin Oliveira. Ele tinha uma vida estável trabalhando em uma churrascaria em Miami até março. Era um dos funcionários de destaque: foi escolhido para atender ao presidente Jair Bolsonaro quando ele foi à cidade. Agora, ficou sem renda.

— Minha função de garçom acabou, porque não tem nenhum restaurante aberto. Não tem nenhum tipo de trabalho. A minha sorte é que sou documentado.

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Franklin se inscreveu para receber o seguro-desemprego e espera o cheque prometido pelo governo. Tem três amigos que já voltaram ao Brasil e diz que essa pode ser uma opção temporária .

Em Massachusetts, imigrantes sem documentos contam com o apoio de ONGs. Em Framingham, cidade da vereadora brasileira Margareth Shepard, a comunidade se organizou para distribuir cestas básicas.

— A comunidade latina está sendo muito afetada. Dois brasileiros já morreram em casa, pelo coronavírus, sem assistência médica.

Oportunidade de ajudar

Durante nove anos, Isabelle Hawley permaneceu nos EUA como imigrante ilegal. Hoje, legalizada, é uma de tantos brasileiros ajudando os EUA a enfrentar a pandemia. Ela trabalha em uma ONG para moradores de rua no Vale do Silício, na Califórnia. No estado da Costa Oeste, há 114 mil pessoas nessa situação. Seu cotidiano é auxiliá-los a encontrar trabalho, casa, resolver problemas com a Justiça, além de doar comidas e roupas.

Ação em igreja em Maryland (EUA) no domingo de Páscoa pra distribuir cesta básica aos brasileiros Foto: Acervo pessoal / Agência O Globo
Ação em igreja em Maryland (EUA) no domingo de Páscoa pra distribuir cesta básica aos brasileiros Foto: Acervo pessoal / Agência O Globo

— Quando tive dificuldade, sempre houve alguém para me ajudar. Agora é importante para mim poder ajudar as pessoas que não têm documentos a passar por esse momento, porque é muito difícil você não ser cidadão americano — diz ela.

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Os mais de 4 mil seguidores da produtora Marcia Pretto estavam acostumados a ver em suas redes anúncios de bailes seguindo a tradição gaúcha e fotos da “prenda” tomando chimarrão. Quando os hospitais de Massachusetts ficaram sem máscaras, uma amiga pediu ajuda a ela para encontrar costureiras para fazer máscaras de pano. Nove se juntaram, quase todas brasileiras. Marcia comprou elástico e tecido.

Juntas, fizeram 3.500 máscaras, doadas aos hospitais. Pouco tempo depois, o governo americano recomendou que todos usassem máscaras em público. As costureiras, antes diaristas e agora sem trabalho, conseguiram renda extra vendendo o novo produto.

Imigrantes são 17% dos trabalhadores nos EUA, mas representam número ainda maior em serviços essenciais, segundo a New American Economy. Entre os médicos, são 28%. Entre auxiliares de enfermagem, 22%.

Ana Carolina Barbalho e Silva é uma dessas trabalhadoras essenciais. Enfermeira da UTI no hospital George Washington, na capital americana, morava com a irmã quando começou a pandemia. Os pais estavam visitando as filhas. Achou melhor se afastar e foi morar sozinha.

O estresse de estar à frente da batalha vai da ansiedade de não saber se estará em uma das UTIs do coronavírus no dia seguinte até as perdas sofridas, como a de um colega, querido por todos e pronto para se aposentar, que morreu pela Covid-19.

— Neste período, em qual momento não chorei? Eu acho que todo mundo chora todo dia — diz a enfermeira.

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Desde o início da pandemia, Ana Carolina já atendeu a cerca de 20 contaminados pelo coronavírus, e lembra a tristeza das mortes na solidão.

—A gente não é imune a sentimentos. É uma morte em que a pessoa se vai sem falar adeus para ninguém, e sem ninguém para dar adeus a elas.

Apesar de tudo, Ana Carolina se sente grata pelas oportunidades que teve no país, privilegiada por poder ajudar os EUA em um “momento tão conturbado”, e não pensa em desistir tão cedo.

— Não tem essa questão de ter medo. O que a gente quer é salvar vidas.