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Independentes são mais votados na eleição da Constituinte no Chile, com virada à esquerda e derrota do governo

Todos os partidos que estiveram no poder desde a redemocratização são castigados; direita não consegue terço das cadeiras necessário para vetar aprovação de artigos
Mulher mapuche se prepara para votar nas eleições chilenas Foto: JUAN GONZALEZ / REUTERS/15-5-21
Mulher mapuche se prepara para votar nas eleições chilenas Foto: JUAN GONZALEZ / REUTERS/15-5-21

Os candidatos independentes surpreenderam e deixaram para trás os partidos tradicionais na votação histórica realizada no fim de semana no Chile para eleger os 155 redatores de uma nova Constituição. Os resultados, incluindo os das eleições paralelas para governadores e prefeitos, também marcam o avanço das forças de esquerda, entre elas o Partido Comunista e a Frente Ampla, e o baixo desempenho de todas as legendas que estiveram no poder no país desde a redemocratização, em 1990.

De acordo com os números oficiais da apuração e projeções da imprensa local, as listas de independentes — grupos mais próximos da esquerda e da centro-esquerda — tiveram 36% dos votos e elegeram 48 constituintes. O grande destaque entre elas foi a Lista do Povo, formada por ativistas das grandes manifestações de 2019, que sozinha deverá obter 27 cadeiras.

Enquanto isso, a lista Vamos pelo Chile, formada pelos partidos de direita e centro-direita que apoiam o governo do presidente Sebastián Piñera, teve 20,56% dos votos e elegeu 37 constituintes. Com isso, não chegará ao terço que esperava obter, correspondente a 52 cadeiras, para bloquear a aprovação de artigos da nova Carta.

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Na esquerda e centro-esquerda, a lista liderada pelo Partido Comunista superou a dos partidos da antiga Concertação, que governou o Chile na maior parte dos últimos 31 anos. A lista Aprovo Dignidade, encabeçada pelo PC, a Convergência Social e a Frente Ampla, teve 18,74% dos votos e conquistou 28 cadeiras, segundo as projeções.

Já a Lista do Aprovo, de centro-esquerda, ficou com 14,46% dos votos e elegeu 25 constituintes. Ela é formada pelo Partido Democrata Cristão, o Partido Socialista, o Partido pela Democracia e outras forças de centro-esquerda aos quais estão ligados os ex-presidentes Patricio Aylwin (já morto), Ricardo Lagos e Michelle Bachelet.

Em um pronunciamento ainda na noite de domingo, o presidente Sebastián Piñera reconheceu que as eleições enviaram uma mensagem "forte e clara" às forças políticas tradicionais:

— Não estamos sintonizando adequadamente com as demandas e os desejos dos cidadãos e estamos sendo desafiados por novas expressões e por novas lideranças  — afirmou o presidente.

O resultado provocou queda de 9,3% no principal índice da Bolsa de Santiago, eliminando todos os ganhos deste ano. O peso chileno teve queda de 1,75%.

Uma das constituintes eleitas como independente é Giovanna Grandón, transportista escolar da periferia de Santiago que ficou conhecida por ir aos protestos de 2019 vestida de Pikachu , o personagem da saga Pokémon. Ela foi candidata pela Lista do Povo, que se configurou como a surpresa da eleição.

Outra das listas de candidatos independentes que alcançou um número expressivo de votos foi a Nova Constituição, formada por integrantes do movimento Independentes Não Neutros, criado em agosto de 2020 por personalidades da sociedade civil, como o psicólogo e ativista social Benito Baranda e a economista Andrea Repetto. De orientação mais centrista, a lista deve eleger 11 constituintes.

Embora inclinados à esquerda, não está claro de quem a Lista do Povo e outros grupos de independentes se aproximarão durante os debates para a formulação da nova Carta, que começam no mês que vem — durante as negociações das listas, os integrantes da Lista do Povo rejeitaram se lançar em conjunto com o PC e a Frente Ampla.

Como nenhum grupo sozinho conquistou um terço das cadeiras, deverá haver negociações intensas para que se cheguem a acordos. A tendência, contudo, é que pautas mais progressistas prevaleçam.

— O resultado representa um triunfo categórico da mudança, dos desejos de transformação do país em um Chile mais justo, digno e próspero  —  disse o ex-chanceler Heraldo Muñoz, candidato do Partido pela Democracia à Presidência nas eleições que ocorrerão em novembro.

A Constituinte terá de nove meses a um ano para redigir a nova Constituição chilena, que depois será submetida um plebiscito. Dos 155 constituintes, 17 serão representantes dos povos indígenas do Chile, cujos direitos não são reconhecidos pela atual Carta. A lei que convocou a Constituinte também reservou ao menos 40% das cadeiras para mulheres, mas na votação elas superaram os homens: foram 79 mulheres eleitas e 76 homens.

A participação dos 14,9 milhões de chilenos aptos a votar ficou aquém do esperado, de 43,35%,menos do que os 50,09% que participaram do plebiscito que aprovou a convocação da Constituinte, em outubro do ano passado, mas mais do que nas eleições municipais anteriores, em 2016. O voto no Chile não é obrigatório. Por causa da pandemia, a votação foi realizada em dois dias e, no total, houve 1.373 candidatos à Convenção Constitucional.

Cidades e regiões

Além dos constituintes, os chilenos votaram para prefeitos, vereadores e, pela primeira vez na História do país, para eleger os governadores das 16 regiões chilenas, em mais uma etapa em direção a um Estado mais descentralizado. Essas votações também foram marcadas por um avanço dos independentes e o recuo dos partidos que apoiam o governo Piñera.

Candidatos que se lançaram como independentes conquistaram 106 das 345 prefeituras chilenas, contra as 52 que tinham antes. As legendas governistas ganharam 88 prefeituras, contra 153 em 2016. Os partidos tradicionais da centro-esquerda também recuaram nos municípios, embora de forma menos contundente, com 59 eleitos, contra 70 que elegeram há cinco anos. A Democracia Cristã manteve seus 47 prefeitos.

Já a Frente Ampla passou de dois para 11 prefeitos, incluindo os de Maipú, Ñuñoa e Viña del Mar, que estão entre os 10 municípios mais populosos do Chile. Sua aliada, a Convergência Social, manteve a prefeitura de Valparaíso.

O Partido Comunista obteve seis prefeituras, contra as três que tinha anteriormente. Sua maior conquista foi em Santiago, a capital, com a vitória de Irací Hassler sobre Felipe Alessandri, do Renovação Nacional, o partido de Piñera, em um grande revés para o presidente.

Nos últimos 30 anos, o PC, que era, ao lado do PS, um dos partidos de sustentação da Unidade Popular de Salvador Allende, só participou de um governo nacional, o segundo de Bachelet, entre 2014 e 2018.

Na eleição para governadores, candidatos do Partido Socialista e um independente que concorreu pela Frente Ampla asseguraram no primeiro turno o governo de três das regiões — Aysén, Magalhães e Valparaíso. Os governadores das outras 13 serão decididos em disputas de segundo turno, já que nenhum candidato obteve os 40% de votos necessários para, segundo a lei chilena, decidir a votação. Em 11 delas, os partidos tradicionais da centro-esquerda estarão representados. Em nove, haverá a presença de partidos conservadores da coalizão de Piñera.

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A Constituinte para substituir a Carta herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) foi uma das reivindicações dos protestos que eclodiram em 2019 no Chile. Quase um mês após o início das manifestações, as forças políticas anunciaram um acordo para convocar um plebiscito para decidir sobre a mudança da Constituição, que finalmente foi realizado em 25 de outubro de 2020.

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Um levantamento da empresa Criteria, divulgado pelo jornal La Tercera, mostrou que 63% dos chilenos acreditam que o resultado da nova Constituição terá "consequências positivas para o país".

—  Venho votar com a expectativa de que possamos conseguir uma mudança para o país, que possamos construir uma nova Constituição muito distante daquela que nos foi deixada pela ditadura — disse no domingo à agência AFP Guillermo Guzmán, arquiteto de 57 anos.

A esperança do mundo político é que o processo constituinte vire a página da longa transição que começou quando o Chile recuperou a democracia.

—   Posso confessar que votei apenas nas mulheres, não dei o meu voto a nenhum homem porque acredito que também faz parte da mudança que as mulheres possam assumir cargos de poder e que nos escutem — disse Fabiola Melo, piscóloga de 35 anos.