Mundo Europa

Macron inicia campanha com defesa de uma França diversa diante do discurso ultradireitista de Zemmour

Presidente destaca Joséphine Baker como símbolo da luta pelas liberdades em ato de entrada da artista no Panteão
Presidente da França, Emmanuel Macron discursa durante cerimônia dedicada à entrada de Josephine Baker no Panteão Francês, em Paris Foto: SARAH MEYSSONNIER / AFP
Presidente da França, Emmanuel Macron discursa durante cerimônia dedicada à entrada de Josephine Baker no Panteão Francês, em Paris Foto: SARAH MEYSSONNIER / AFP

PARIS — Para muitos analistas, a campanha presidencial francesa começou, realmente, na terça-feira. Não apenas porque foi o dia em que o polemista de extrema direita Éric Zemmour , o homem que agitou e aprofundou a direita no campo conservador, lançou oficialmente sua candidatura. A corrida para o Palácio do Eliseu foi iniciada porque, no mesmo dia, seu atual inquilino e candidato à reeleição, Emmanuel Macron, comandou a entrada de Joséphine Baker no Panteão da França .

Com ela, chega ao grande templo da cultura de Paris uma mulher — apenas a sexta a entrar no Panteão — de origem humilde, estrangeira (americana) e, pela primeira vez, negra. No entanto, chega também uma lutadora incansável contra os fascismos que varreram a Europa em seu tempo e a favor dos direitos civis e das liberdades para homens e mulheres de todas as raças e origens.

Conheça: Éric Zemmour, o polemista admirador de Trump que embola o campo da ultradireita na França

Cinco meses antes das eleições francesas, Joséphine Baker, que morreu em Paris, em 1975, aos 69 anos, tornou-se um símbolo do que é — ou acredita ser — um país em que, enquanto alguns gritam contra o que definem ser o fim da identidade nacional (branca) da França e querem endurecer as condições para ser "francês", outros defendem uma nação construída e enriquecida por sua diversidade.

— [Joséphine Baker] militava pela liberdade. Sua causa era o universalismo, a unidade da raça humana, a igualdade de todos diante da identidade de cada um, a aceitação de todas as diferenças reunidas pela mesma vontade, a mesma dignidade — disse Macron diante do cenotáfio de Baker, que estava coberto com a bandeira francesa e acompanhado por cinco medalhas, incluindo a Legião de Honra.

Os restos da artista e ativista vão permanecer enterrados no cemitério de Mônaco ao lado de seu marido e de um dos 12 filhos adotivos de sua "tribo arco-íris", como ela chamou uma família composta de diversas nacionalidades e raças na qual, como lembrou Macron, ela também incutiu os valores da "tolerância, secularismo, gosto pela igualdade e fraternidade".

A batalha presidencial, ou pelo menos a batalha de ideias e símbolos, começou horas antes. Ao meio-dia, Zemmour lançou sua campanha com um vídeo no qual se apresentou como o defensor de uma França perdida — e branca, como as imagens que acompanham seu discurso deixaram claro — diante de uma sociedade atual — homens negros enfrentando a polícia, mulheres usando véus islâmicos — conflituosa e dividida, à beira de perder sua identidade devido à imigração que "não é a causa de todos os problemas, embora os agrave a todos", como ele afirmou.

Análise: França ainda não achou saída para questão explosiva do Islã radical

O candidato falava sentado, lendo papéis diante de um microfone antigo com uma estante no fundo, imitando o famoso apelo do general Charles de Gaulle de 18 de julho de 1940 para resistência contra a ocupação nazista, situação com o qual Joséphine Baker já estava totalmente comprometida. Zemmour, que enfrenta julgamento por incitamento ao ódio racial e insulto, tem sido severamente criticado, entre outras coisas, por afirmar que o regime colaboracionista do marechal Pétain, contra o qual De Gaulle conclamou à luta, “salvou” os judeus franceses.

Ao mesmo tempo em que Zemmour lançou sua campanha na internet, Macron lembrou nas redes sociais sobre a iminente entrada de Baker no Panteão com um vídeo destacando não apenas sua bem-sucedida carreira artística, mas seu papel como "ícone da Resistência e da luta antirracista", reconhecido em particular por De Gaulle, com quem a artista teve um relacionamento próximo. O contraste com a visão da França de Zemmour não poderia ser maior.

O Eliseu negou qualquer interesse político na entrada de Baker no Panteão. No entanto, desde o anúncio de Macron, no final de agosto, isso tem sido interpretado como um chamado para celebrar o que une os franceses após um período de cinco anos de múltiplas fraturas: desde a agitação social causada pelo movimento dos Coletes Amarelos até os tumultos nas ilhas caribenhas de Guadalupe e Martinica, onde protestos desencadeados pela oposição à vacina contra o coronavírus reabriram um antigo conflito socioeconômico e racial.

Leia mais: Bicentenário de Napoleão Bonaparte divide a França, e Macron tenta se equilibrar entre a celebração e a crítica

Mas a entrada de uma mulher negra  e de origem estrangeira no Panteão também tem outra dimensão para um presidente acusado de olhar demasiado para a direita. Macron, atualmente em desacordo com Londres por causa da crise migratória no Canal da Mancha , onde 27 pessoas morreram há uma semana, tem mantido um discurso duro sobre o assunto, já que a oposição na esquerda o repreendeu repetidamente.

Entretanto, alguns dos rivais de Macron nas eleições presidenciais não queriam que ele fosse o único a celebrar o artista.

Baker "será para sempre o rosto de uma França orgulhosa de sua diversidade, seu humanismo e seus valores", declarou a candidata socialista Anne Hidalgo , que foi convidada para a cerimônia como prefeita de Paris.

— Contra o racismo e o antissemitismo, nos Estados Unidos, na França e além. Joséphine Baker, obrigado por ter encarnado valores universalistas com tanta energia — disse o candidato ambientalista Yannick Jadot.

O  líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, juntou- se ao coro:

— Um modelo de insubordinação para sua vida —  disse ele.

Até mesmo a maior rival de Macron — e Zemmour — à direita, Marine Le Pen , garantiu que saudou o reconhecimento de uma mulher que "brilhou em sua defesa da França".