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Mencionado por Putin, passado nuclear da Ucrânia é marcado por medidas incisivas e lamentos oficiais

País chegou a abrigar quase 4 mil ogivas depois do fim da União Soviética e abriu mão do arsenal em troca de garantias de segurança, mas decisão foi apontada como um erro por analistas e lideranças locais
Bandeira ucraniana tremula em praça no centro de Kharkiv, cidade a cerca de 40 km da fronteira com a Rússia Foto: SERGEY BOBOK / AFP
Bandeira ucraniana tremula em praça no centro de Kharkiv, cidade a cerca de 40 km da fronteira com a Rússia Foto: SERGEY BOBOK / AFP

Durante entrevista coletiva nesta terça-feira, o presidente russo, Vladimir Putin, repetiu uma alegação usada desde o agravamento da crise envolvendo a Ucrânia: uma suposta intenção do país vizinho de obter armas nucleares. Putin chegou a citar a capacidade herdada dos tempos da URSS, o que, em sua visão, facilitaria na obtenção de um novo arsenal. Durante a reunião do Conselho de Segurança russo, na segunda-feira, chegou-se a afirmar que, se quisesse, Kiev se tornaria uma potência nuclear "mais rápido do que o Irã".

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Historicamente, a Ucrânia abrigava uma parte considerável do arsenal nuclear da União Soviética: estima-se que, em seu auge, havia cerca de quatro mil ogivas operacionais, entre armas estratégicas e táticas. As armas também estavam posicionadas nas repúblicas da Bielorrússia e do Cazaquistão, onde muitas delas foram testadas.

Com o desmantelamento da União Soviética, em 1991, houve uma espécie de "corrida" por parte das novas autoridades ucranianas para entregar esse arsenal à Rússia e se declarar uma nação não nuclear.

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Em outubro daquele ano, a Rada, o Parlamento ucraniano, emitiu uma declaração apontando o desejo de se livrar do arsenal, estabelecendo mecanismos para o repasse das armas à Rússia: o texto é claro ao afirmar que "a presença de armas nucleares da ex-URSS no território da Ucrânia é temporária", e que "agora, essas armas nucleares estão sob o controle das estruturas relevantes da ex-URSS".

Especialistas apontam que pesaram nessa decisão fatores como o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, e o desejo dessa nova nação ser reconhecida como independente e não como um "Estado satélite" de Moscou.

Transição confusa

Mas o período entre a declaração e a entrega de fato das armas não foi tão tranquilo.

Em artigo publicado na revista Foreign Affairs, em 1993, o professor e teórico das Relações Internacionais, John Mearsheimer, apontou que todas as armas nucleares táticas em solo ucraniano foram repassadas à Rússia entre janeiro e maio de 1992.

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Contudo, mais de 1,6 mil ogivas nucleares estratégicas, destinadas anteriormente a ataques contra os EUA e aliados, seguiam no país, e não estava claro quem era o responsável por elas. Mearshimer apontava, por exemplo, que os ucranianos não tinham a capacidade de usar esse tipo de armamento sem a ajuda dos russos, muito embora tenham tentado desenvolver sistemas próprios.

Um passo para resolver a questão foi dado em 1994, com a assinatura do chamado Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança. O texto foi assinado por Rússia, Reino Unido, EUA e pelas três ex-repúblicas soviéticas com armas nucleares, Bielorrússia, Ucrânia e Cazaquistão.

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Ali, esses três países recebiam garantias recebiam garantias de que suas soberanias territoriais seriam respeitadas, de que não seriam ameaçados pelas potências nucleares e que os demais signatários não usariam a pressão econômica para influenciar suas políticas internas. Bielorrússia, Ucrânia e Cazaquistão concordaram, e se livraram em definitivo de seus arsenais "herdados" no final de 1996.

Erro histórico?

Ate hoje, o Memorando é visto como um erro por muitos. A começar pelo próprio Mearsheimer.

"Uma Ucrânia nuclearizada faz sentido por duas razões. Primeiro, é imperativo manter a paz entre Rússia e Ucrânia. Isso significa garantir que os russos, que possuem um histórico de péssimas relações com a Ucrânia, não tentem invadir o país", escreveu, ainda em 1993. Em seguida, ele afirma que seria "pouco provável" que as armas fossem de fato transferidas para a Rússia, o que de fato ocorreu anos depois.

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A questão foi novamente levantada em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e foi acusada de dar apoio aos separatistas no Leste do país: à época, Vladimir Putin sugeriu que o Memorando não era mais válido, uma vez que, após o que chamou de "golpe de Estado, se referindo à revolução que derrubou seu aliado, Viktor Yanukovich, uma nova entidade estatal havia surgido, com a qual Moscou não havia feito compromissos. Países como EUA, Reino Unido, França e Japão afirmaram que a Rússia havia violado os acordos, mas não tomaram medidas mais contundentes.

— Nós abrimos mão da capacidade [nuclear] em troco de nada — afirmou, ao New York Times, Andriy Zahorodniuk, ex-ministro da Defesa. — Agora, sempre que alguém nos oferece um pedaço de papel para assinar nossa resposta é: "muito obrigado, mas já tivemos um desses há algum tempo.

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Em 2019, o presidente Volodymyr Zelensky também sugeriu que abrir mão do arsenal talvez não tenha sido uma decisão acertada.

— A Ucrânia sempre demonstrou sua vontade de promover a paz de forma civilizada. E tomou passos nessa direção. Por exemplo, quando ela abriu mão de sua capacidade nuclear, que era maior do que as de Reino Unido, França e China combinadas. Parecia que estávamos construindo um mundo diferente e novo — afirmou, em discurso na Assembleia Geral da ONU. — Mas, no fim das contas, neste "mundo novo", nosso país perdeu parte de seus territórios e está perdendo cidadãos diariamente.

No ano passado, o embaixador ucraniano em Berlim, Andriy Melnik, disse que se o país não pudesse se juntar à Otan, não teria outra escolha que não "se rearmar".

— O que mais podemos fazer para garantir nossa defesa — declarou Melnik à rádio alemã DPA, em outubro.

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Mas analistas apontam que, até o momento, não há sinais de que haja uma mudança de rumo em Kiev: o país é signatário do Tratado de Não Proliferação, e sabe que estaria sujeito a sanções aplicadas pelas mesmas potências internacionais que hoje pressionam a Rússia, além de limitações técnicas evidentes.

— Muitos países hoje apoiam a Ucrânia — disse ao New York Times Steven Pifer, ex-diplomata americano que participou da negociação do Memorando de Budapeste. Para ele, esse apoio rapidamente desapareceria caso Kiev decidisse "reaver" suas armas nucleares.