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Na Alemanha, medidas de restrição impostas pelo coronavírus dão força a movimento ultranacionalista

De caráter heterogêneo, grupo agrega negacionistas, adeptos de teorias da conspiração e cidadãos comuns na luta contra uma suposta nova ordem mundial; extrema direita vê oportunidade em protestos até agora minoritários
Mulher protesta contra restrições ao coronavírus na praça Rosa Luxemburg, em Berlim Foto: CHRISTIAN MANG / REUTERS/09-05-2020
Mulher protesta contra restrições ao coronavírus na praça Rosa Luxemburg, em Berlim Foto: CHRISTIAN MANG / REUTERS/09-05-2020

Berlim — Nas últimas semanas, milhares de pessoas têm se manifestado em cidades alemãs contra a "ditadura do corona", formando um amálgama ideológico que transcende em muito a divisão esquerda-direita. São multidões heterogêneas e zangadas, que compartilham o sentimento de serem vítimas das elites globais, acusadas de usar o surgimento de um novo vírus como desculpa para enriquecer a si mesmas e reduzir as liberdades do "povo".

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Esses manifestantes ainda representam uma pequena minoria, mas emitem um ruído que já é ouvido com preocupação dentro dos muros do Parlamento nacional, pois ameaçam se tornar um novo movimento populista contra os partidos tradicionais. A extrema direita, deslocada devido à pandemia, vê o descontentamento popular como uma oportunidade política que não pretende perder.

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Georg Gierasch, um motorista de 43 anos que acabou de ficar desempregado, chega a um dos protestos convocados em Berlim com uma faixa que diz: Widerstand (resistência) 2020, o nome de um novo grupo que reúne parte do descontentamento, juntamente com o lema "Sejamos diferentes, chegou a hora".

— Eles cortaram nossos direitos e nossa liberdade de movimento devido a uma gripe. Também não temos liberdade para pensar. Você só pode pensar no que o governo diz e isso nos assusta — afirma Gierasch, enquanto a polícia grita "distância, distância!" em vão pelo alto-falante.

Gierasch compartilha um medo adicional com muitos dos irritados que saem às ruas nos dias de hoje.

— O governo está trabalhando em uma vacina com Bill Gates e, em seguida, ele nos forçará a obtê-la. Quem não a tiver, será discriminado por tudo em sua vida profissional, por viajar — diz.

Gates é para os conspiradores a face visível do mal, o homem que alguns até acusam de criar a Covid-19 para vender milhões de vacinas. O fato de a vacina em questão não existir não parece ser um impedimento para as teorias da conspiração ganharem terreno.

A presença crescente de mensagens antissemitas é outro ingrediente desse coquetel conspiratório. Alguns manifestantes podem ser vistos com uma estrela amarela na lapela — a insígnia usada por nazistas para marcar judeus —, acompanhada de mensagens impressas como "não vacinado".

— Qualquer pessoa que participe de uma manifestação contra a restrição de direitos fundamentais deve estar ciente de quem faz parte dela e que tipo de mensagens são espalhadas — disse Josef Schuster, presidente do Conselho Judaico na Alemanha, que alertou contra a tentativa de banalizar o Holocausto.

Modelo sueco

Alguns metros adiante, um casal de aparência hippie, acompanhado de seus filhos e que se declara ser antivacina, concorda com Gierasch.

— Acreditamos que as medidas são apenas uma desculpa para fazer o que querem, estabelecer uma ditadura da saúde e um estado policial no qual as vacinas são obrigatórias — diz a mulher, que não quis ser identificada. — O coronavírus não é mais perigoso que qualquer outra gripe. Tudo isso é um ótimo teatro.

Eles vieram do estado de Mecklemburgo-Pomerânia, no Norte do país, para participar, pela terceira vez, do protesto semanal. Mas, no próximo sábado, explicam, não planejam viajar para Berlim, porque em sua região já existem pessoas suficientes para convocar um protesto local. Juntamente com militantes de causas mais ou menos excêntricas, existem cidadãos comuns simples, que expressam sua frustração com a nova realidade.

Aqueles que saem às ruas são uma minoria clara em um país onde os cidadãos têm até agora amplamente apoiado a gestão do governo da pandemia. Pesquisas, no entanto, começam a mostrar algum cansaço com as restrições. E isso apesar do fato de que na Alemanha não houve nada como uma quarentena total, e as pessoas não foram proibidas de sair de casa.

O controle da pandemia na Alemanha é visto como exemplo por muitos países: o sistema de saúde não entrou em colapso em nenhum momento e o número de mortes (7.634) é comparativamente muito menor do que em muitos de seus vizinhos. Em parte por causa disso, a experiência de uma pandemia que muitos percebem como algo distante, sem relação com eles ou suas famílias, pode acabar fazendo da Alemanha uma vítima de seu próprio sucesso.

A extrema direita, que ainda não encontrou sua direção política em uma crise que tem fortalecido os partidos tradicionais, também está muito presente nos protestos, ora como organizadora, ora como simples participante. Seus integrantes se erguem como guardiões dos princípios democráticos e do respeito à vontade do povo, diante do que consideram um desvio autoritário do governo de Angela Merkel . Eles também se mostram simpáticos às preocupações dos cidadãos comuns.

Gunnar Lindemann, deputado pelo Alternativa para a Alemanha (AfD) no Parlamento Regional de Berlim, já participou desses protestos três vezes.

— Eu vou falar com as pessoas. Elas são muito gratas por haver um deputado que as ouvirá e levará a sério — explica Lindemann por telefone.

O político acredita que medidas para impedir a disseminação do vírus destroem a economia e que é preciso “olhar para a Suécia", país que, por não determinar o confinamento e manter escolas primáiras e bares abertos, se tornou uma meca para negacionistas do coronavírus.

A AfD, partido de extrema direita, não quer perder a oportunidade de explorar esse descontentamento popular depois de ter se enfraquecido nas pesquisas, já que a exploração da crise dos refugiados perdeu força e a oposição às políticas climáticas não se materializou completamente. A própria Alice Weidel, colíder do grupo parlamentar da AfD, deixou clara a linha do partido na quinta-feira em um comunicado acusando o governo de querer implantar um "cartão de imunidade, que, uma vez introduzido, também abrirá caminho para discriminação arbitrária em muitas outras áreas".

— A crise do coronavírus não deve ser usada para criar gradualmente um estado de vigilância — afirmou.

Cartilha populista

Além das motivações individuais, os protestos alemães exalam o populismo clássico em sua essência e formato. Nas ruas, eles desprezam as elites e, em geral, tudo o que cheira ao establishment, incluindo cientistas e a mídia tradicional, vistox por eles como colaboradores para a criação de um estado de medo que justifique as medidas.

— É perigoso, porque eles estão tentando implantar uma nova narrativa através de teorias da conspiração de que pessoas como Bill Gates desejam implantar uma nova ordem mundial. As pessoas passam mais tempo em casa conectadas ao computador e a internet, e esta crise está cheia de notícias falsas — explica Sandro Witt, pesquisador da associação Mobit, especializada em extremismo de direita.

Os fóruns de internet alternativos são a correia de transmissão das informações falsas, e plataformas como Facebook, Telegram e YouTube são os principais canais em que os argumentos dirigidos contra o governo alemão são repetidos. A conspiração é mundial e os poderosos, dizem eles, esmagarão ainda mais os que estão embaixo. São muito evidentes as fontes de onde bebem quando conversam com as pessoas na rua, porque muitos repetem os argumentos que circulam na internet quase ao pé da letra.