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Na emergência do coronavírus, informais correm risco de fome na América Latina

Mais da metade da população economicamente ativa do continente está na informalidade. Medidas que governos adotaram para socorrer setor vulnerável são insuficientes, dizem analistas
Um homem em um abrigo para imigrantes venezuelanos em La Paz, na Bolívia Foto: DAVID MERCADO / REUTERS
Um homem em um abrigo para imigrantes venezuelanos em La Paz, na Bolívia Foto: DAVID MERCADO / REUTERS

Chefe de família, mãe de cinco filhos entre 10 e 24 anos, pedreira e membro do primeiro sindicato de mulheres construtoras da Bolívia, Nevy Chacon está entrando em uma fase de desespero em meio à pandemia. Em conversas com outras colegas do sindicato, chegou a uma dramática conclusão: “Se o coronavírus não nos matar, morreremos de fome”. Nevy é um dos 140 milhões de trabalhadores informais dos países da América Latina e do Caribe, o que representa 53% da população economicamente ativa da região, de acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Muitos governos adotaram medidas para socorrer este setor tão vulnerável a crises de todo tipo, mas, segundo analistas, elas são insuficientes e deixaram de fora pessoas como a pedreira boliviana que, aos 49 anos, disse estar vivendo a situação mais difícil de sua vida.

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De acordo com monitoramento realizado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), 14 países já anunciaram iniciativas para ajudar trabalhadores informais e de baixos recursos. Nesta quarta-feira, o presidente do Chile, Sebastián Piñera, apresentou o segundo pacote emergencial de seu governo, que prevê desembolsar US$ 2 bilhões para atender 2,6 milhões de trabalhadores que vivem na informalidade.

— A pandemia ameaça a saúde e a vida das pessoas, mas também gera enormes dificuldades econômicas para muitos — declarou o presidente chileno.

Mais da metade dos trabalhadores latino-americanos trabalham na informalidade Foto: Arte O Globo
Mais da metade dos trabalhadores latino-americanos trabalham na informalidade Foto: Arte O Globo

Ajuda insuficiente

O mesmo alerta foi feito semana passada pela secretária executiva da Cepal, Alicia Bárcena, que destacou iniciativas como as adotadas por Argentina e Brasil, entre outros, mas lembrou que os trabalhadores informais precisam de um apoio gigantesco e que esta crise deve ser resolvida pelos Estados. No caso do governo de Alberto Fernández, foi criado o chamado Ingresso Familiar de Emergência (IFE), de 10 mil pesos (em torno de R$ 790, em princípio pagos apenas em abril), destinado a trabalhadores sem carteira assinada entre 18 e 65 anos.

O vendedor ambulante de espanadores Alejandro Cáseres já preencheu todos os formulários e está esperando para saber se sua solicitação será aceita.

— O valor do IFE é mais ou menos o que eu ganhava mensalmente, seria uma ajuda muito grande. As poucas reservas que eu tinha já estão acabando — contou o artesão argentino.

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Cáseres mora com uma amiga e tem a sorte de não pagar aluguel. Há vários anos, fabrica espanadores para casas e carros e os vende em bairros da capital e da Grande Buenos Aires. A quarentena total decretada pela Casa Rosada em meados de março foi para ele, como para muitos outros argentinos, uma catástrofe. Segundo a OIT, cerca de 47,2% dos trabalhadores argentinos estão na informalidade.

— Estamos todos esperando que a quarentena termine logo para podermos sair. Talvez tenhamos de tramitar uma autorização para circular. Tudo ficou muito complicado, mas vamos indo. Confio no governo — afirmou Cáseres.

Na Bolívia, o percentual de informais chega a 83,1%. O caso de Nevy é complexo porque seu perfil não foi incluído em nenhum dos programas de ajuda social aplicados pelo governo interino de Jeanine Áñez. A única medida que a beneficia é a proibição de corte dos serviços de luz, água e gás durante a quarentena por falta de pagamento.

— Deram uma ajuda para famílias com crianças até 2 anos, e o meu mais novo tem 10. Estou realmente apavorada, e em nosso sindicato decidimos que, com ou sem quarentena, sairemos às ruas depois do dia 15 (data em que terminaria o isolamento obrigatório) porque senão passaremos fome — desabafou a pedreira.

Mais difícil para mulheres

Nevy sabe que provavelmente não conseguirá trabalho no setor da construção, mas está disposta a fazer qualquer coisa.

— Estamos devendo aluguel e pagamentos em lojas de alimentos porque não temos mais dinheiro. Os trabalhadores informais somos invisíveis na Bolívia, e no caso das mulheres é ainda mais difícil. Em nosso sindicato, 95% das trabalhadoras são chefes de família e, em muitos casos, quando conseguimos trabalho, nos pagam menos do que aos homens — lamentou Nevy, que mora na zona norte de La Paz.

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Mesmo atravessando recessões e processos de desaceleração do crescimento, todos os governos da região anunciaram medidas nas últimas semanas. Mas suas margens de manobra, apontou o argentino Amilcar Collante, do Centro de Estudos Econômicos do Sul, são muito menores do que as de países como Itália, Alemanha ou Estados Unidos.

— Na Argentina, as medidas são paliativos numa crise gravíssima. A situação dos trabalhadores informais é crítica, mas a do país também — afirmou Collante.

Para Carlos Cordero, da Universidade Maior de San Andrés, de La Paz, “com mais de 80% de informalidade e uma taxa de pobreza também altíssima, a Bolívia está fazendo o que pode, mas claro que é pouco”.

— O governo deu uma ajuda de cerca de US$ 60 (R$ 310) para famílias de setores vulneráveis, mas tem muita gente pedindo apoio financeiro e é impossível incluir a todos — disse o analista boliviano.

No Uruguai, o governo do presidente Luis Lacalle Pou, empossado em 1º de março passado, implementou programas emergenciais, sobretudo em matéria de alimentação, mas sindicatos e trabalhadores informais asseguram que 400 mil pessoas, num país de 3,5 milhões de habitantes, não foram protegidas.

Nos últimos dias, como aconteceu com Nevy na Bolívia, muitos trabalhadores latino-americanos na informalidade começaram a temer que, junto com o fantasma da Covid-19, paire sobre suas cabeças outro tão ou mais assustador: o da fome. Em redes sociais, multiplicaram-se as mensagens com a hashtag #nohaycuarentenaconhambre (não existe quarentena com fome).

Na cidade colombiana de Soacha, na província de Cundinamarca, foi lançada a campanha “pano vermelho”. Cada família que está passando por necessidades extremas coloca alguma roupa, ou qualquer tecido vermelho em sua janela ou porta para que as autoridades locais e algum vizinho possam ajudar. Com um pano vermelho, avisam que estão à beira da fome, escreveram muitos colombianos em redes sociais.