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Na véspera de completar primeiro ano no cargo, Biden reconhece frustrações, mas nega ter prometido mais do que podia cumprir

Desde promessa da posse de 'unir o país', Biden enfrenta sequência de crises e vê popularidade despencar; presidente critica o 'esforço intenso' da oposição republicana de travar sua agenda
Joe Biden concede entrevista coletiva na véspera de completar um ano à frente da Casa Branca Foto: MANDEL NGAN / AFP
Joe Biden concede entrevista coletiva na véspera de completar um ano à frente da Casa Branca Foto: MANDEL NGAN / AFP

Na véspera de completar um ano à frente da Presidência dos EUA, Joe Biden fez uma incisiva defesa de seu governo, citando ações na economia e no combate à pandemia e declarando que hoje firma as bases para o desenvolvimento futuro — ao mesmo tempo, reconheceu o cansaço dos americanos, mas declarou que não prometeu mais do que podia cumprir.

—  Não prometi demais. Se você olhar para o que fizemos, vai reconhecer os progressos alcançados — declarou.— Sei que há muita frustração e fadiga neste país. E sabemos o motivo: a Covid-19. A Ômicron vem nos desafiando de forma que hoje é uma nova inimiga.

Esta foi a segunda entrevista coletiva concedida somente pelo presidente e ocorre durante um momento crítico: a pandemia parece longe do fim , e a vacinação segue a passos lentos. A inflação corrói o poder de compras, e problemas políticos dentro e fora dos EUA põem a Casa Branca contra a parede.

Resultado: a aprovação do democrata segue em queda livre a poucos meses das eleições legislativas de novembro, que renovarão toda a Câmara e um terço do Senado.

Quando assumiu, em 20 de janeiro de 2021, Biden encontrou um país traumatizado pela mentira promovida pelo ex-presidente Donald Trump de que a eleição que o democrata vencera havia sido fraudada. A falsa alegação culminara na invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro , um dos mais graves ataques ao Legislativo americano. Naquele momento, Biden falou em “escrever uma história de esperança, e não medo. De união, e não divisão”.

Os meses seguintes mostrariam que escrever esta nova história tem sido tarefa complicada.

Testes e republicanos

Na pandemia, apesar de medidas para impulsionar a vacinação, com doses sobrando para os americanos, o país está há meses estagnado nos 62,5% da população total vacinados. As variantes Delta e agora a Ômicron provocaram recordes de casos e mortes: dos 852 mil americanos mortos pela Covid-19, 440 mil morreram no último ano. O discurso antivacina— apoiado por decisões judiciais contra a vacinação obrigatória — fez com que o presidente falasse em "epidemia dos não vacinados".

Biden lembrou que, hoje, 208 milhões de pessoas já completaram o ciclo vacinal com duas doses ou dose única, afirmando que a situação não é mais de pânico, mas sim de preocupação. Ele citou o que chamou de ferramentas para controlar o vírus, como os tratamentos antivirais e a testagem — neste ponto, reconheceu que o governo pode ter errado.

— Deveríamos ter testado mais antes? Sim — respondeu a um jornalista, mencionando que ampliou os locais de testagem e o envio de um bilhão de testes gratuitos à população. — Mas passamos de zero testes caseiros para quase 375 milhões no mercado este mês.

Em 2021, as estimativas apontam para um crescimento do PIB de quase 6%, com uma desaceleração a partir do terceiro trimestre — mas o aspecto que mais abala Biden é a inflação, hoje perto de 7% ao ano, a mais alta desde 1982, fruto do aumento da demanda e problemas em cadeias de suprimentos .

Presidente dos EUA, Joe Biden, durante entrevista coletiva na Casa Branca Foto: MANDEL NGAN / AFP
Presidente dos EUA, Joe Biden, durante entrevista coletiva na Casa Branca Foto: MANDEL NGAN / AFP

Para Biden, a solução passa pelo crescimento da economia e pelo aumento da competitividade entre as empresas. Ele afirmou que os planos de estímulo são um caminho para "fazer com que o país se mova mais rapidamente" e defendeu as ferramentas financeiras utilizadas pelo Fed.

— Dada a força de nossa economia e os recentes aumentos de preços, é apropriado, como indicou o presidente do Fed, [Jerome] Powell, recalibrar o apoio que agora é necessário.

Pelo lado positivo, citou a queda no desemprego, hoje em 3,9%, contra os 6,3% de quando assumiu o posto, mencionou a elevação do nível de renda dos americanos e apontou para a redução dos índices de pobreza, resultado das políticas de auxílio financeiro às famílias de baixa renda ao longo da pandemia.

O presidente também enfrenta problemas no Congresso. Apesar de os democratas controlarem as duas Casas, aprovar projetos, como os trilionários pacotes de recuperação e infraestrutura, tornou-se uma tarefa inglória, demandando intervenção pessoal para superar divisões na base governista, em especial no Senado. Ele reconheceu que algumas medidas precisarão ser "fatiadas", como o pacote socioambiental, travado desde o ano passado.

— Podemos quebrar o pacote, aprovar o que for possível agora, e depois retornar para lutar pelo resto mais tarde — afirmou.

Projetos para garantir o direito de voto diante da ofensiva republicana para reduzi-lo nos estados que controlam também sofrem oposição interna. Os republicanos aproveitam o momento para apresentar Biden como um líder enfraquecido, apostando ser possível retormar o Congresso em novembro.

— Não esperava que haveria um esforço tão intenso para que o mais importante a ser feito fosse garantir que o presidente Biden não conseguiria fazer nada — declarou o presidente, mencionando o líder da minoria no Senado, Mitch McConnell. — O que querem os republicanos?

Preço a ser pago

Um dos pontos mais marcantes do discurso de posse de Biden foi a mensagem ao mundo de que “os EUA estão de volta”, uma reversão da política isolacionista de Trump. Biden tenta reconstruir alianças negligenciadas, como com a Europa, e mudou de vez o foco da política externa do Oriente Médio para a Ásia, criando iniciativas de contenção da China.

Risco de erro de cálculo: Vista como inimiga, Rússia foi deixada de fora da Europa pelo Ocidente, afirmam especialistas

Helicópteos russos em base militar em Rostov, região próxima à fronteira com a Ucrânia Foto: SERGEY PIVOVAROV / REUTERS
Helicópteos russos em base militar em Rostov, região próxima à fronteira com a Ucrânia Foto: SERGEY PIVOVAROV / REUTERS

Ao mesmo tempo, sua rivalidade com a China e também com a Rússia, que classificou como adversária, ainda não deram resultados palpáveis. Há um acirramento das tensões, como nos casos de Taiwan e da Ucrânia, que corre o risco de uma nova invasão russa. Para ele, Vladimir Putin não deseja uma guerra de grande porte mas, ao mesmo tempo, quer testar o Ocidente. E aí está o risco de uma escalada.

— A Rússia será responsabilizada se invadir a Ucrânia — afirmou Biden, afirmando que os custos financeiros e humanos para Moscou serão "enormes", citando sanções "sem precedentes".

O presidente ainda sugeriu que a punição poderia ser relativa à escala do eventual ataque.

— Não estou certo sobre o que ele fará. Eu aposto que ele irá adiante. Ele precisa fazer algo — afirmou Biden. — Uma coisa é se for uma pequena incursão, então teremos uma discussão sobre o que fazer e sobre o que não fazer.

À CNN, um integrante do governo ucraniano se disse "chocado" com a afirmação, afirmando que serve como um "sinal verde" para o Kremlin. Depois do fim da coletiva, a Casa Branca disse que qualquer invasão será respondida de forma "direta, severa e unificada" pelos EUA e aliados.

A saída desastrosa do Afeganistão , pondo fim a 20 anos de ocupação, e a demora em ressuscitar o acordo nuclear com o Irã, promessa de campanha, ainda devem assombrá-lo no futuro. Sobre as negociações com Teerã, disse que "houve progresso", mas que "a hora não é de se render".

Ao falar da América Latina, fez criticas à política de Trump para a região e disse que ela pode se tornar um "hemisfério democrático", criticando ainda uma expressão usada ao longo de décadas: a de que a região seria o "quintal dos EUA".