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No Japão, governo é criticado por ter demorado a agir com mais firmeza contra coronavírus

Legislação do país, contudo, não permite imposição de isolamento ou sanções; especialistas acham que medida veio tarde demais
Pessoas caminham no distrito de Kabukicho, em Tóquio
Foto: BEHROUZ MEHRI / AFP
Pessoas caminham no distrito de Kabukicho, em Tóquio Foto: BEHROUZ MEHRI / AFP

O primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe , declarou estado de emergência nesta terça-feira para tentar conter a expansão do novo coronavírus nas principais cidades do país. Abe vinha sofrendo forte pressão popular com a rápida expansão do vírus na capital nas últimas semanas sem que ações efetivas fossem tomadas  — na sexta-feira, ele virou motivo de piada nas redes sociais após anunciar que distribuiria duas máscaras de pano reutilizáveis por família.

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Segundo o premier, o estado de emergência será adotado em Tóquio e mais seis distritos, abrangendo 44% da população, com validade inicial até 6 de maio . Porém, diferentemente  do que ocorre em outros países, não haverá isolamento obrigatório nem penalidades por desrespeitar a ordem, isso porque a Constituição japonesa preza pelas liberdades civis e não permite que o governo faça imposições que as violem à população.

—  Devido à experiência da Segunda Guerra, muitos japoneses são intolerantes ao aumento do poder do governo — explicou ao GLOBO Mikitaka Masuyama , vice-presidente do Instituto Nacional para Estudos Políticos. — O primeiro-ministro precisa de uma base legal para declarar uma emergência, no entanto, essa declaração de emergência não tem o mesmo efeito que a lei marcial de outros países e apenas fornece uma base legal para os pedidos de autoisolamento.

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Na prática, a declaração — baseada numa emenda parlamentar recentemente aprovada — dá às autoridades locais o poder legal de solicitar à população que  fique em casa e o fechamento de escolas, empresas, shoppings, teatros e cinemas, bem como o cancelamento de grandes eventos. Caso as empresas não cooperem sem justificativa legítima, as autoridades também podem dar " instruções ", que têm uma conotação mais forte do que as solicitações.

Especialistas da área de saúde, no entanto, argumentam que Abe demorou para agir de forma mais dura e que, agora, a ação já não terá mais tanta eficácia.

— É tarde demais — disse ao GLOBO Kenji Shibuya, diretor do Instituto para Saúde da População do King’s College de Londres. — Tóquio já estava na fase explosiva a partir do final de março, e houve uma reunião do painel de especialistas em 1º de abril, na qual não foram compartilhadas as informações sobre a possível explosão (de casos).

Para Shibuya, o colapso do sistema de saúde japonês é praticamente inevitável.

—  (Shinzo Abe) deveria ter ouvido a opinião dos especialistas e agido rapidamente para fechar Tóquio desde 1º de abril, mas ele não fez isso —  criticou.

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Na capital, os  casos do novo coronavírus mais do que dobraram na última semana, superando a marca de 1.200 — 80 novos diagnósticos foram relatados só nesta terça-feira. No país, são 3.906 infectados e 93 mortes causadas pela doença.

Cultura ‘mais limpa’

Sem a possibilidade de sanções , as autoridades contam essencialmente com a boa vontade dos cidadãos, que são majoritariamente favoráveis ao estado de emergência. Contudo, algumas pessoas temem que a adesão espontânea da população seja insuficiente para conter a disseminação da doença.

— A governadora de Tóquio, Yuriko Koike, tem pedido para as pessoas ficarem em casa, especialmente nos fins de semana, e não irem a lugares lotados, como bares e discotecas — conta Rimsha Bahl, 30, professora de inglês que mora em Hachioji, no subúrbio de Tóquio. — Mas, para ser sincera, não tenho certeza se as pessoas estão realmente seguindo o conselho. Olhando os stories de alguns jovens no Instagram, até a semana passada eles continuavam bebendo e festejando.

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Mas alguns já se adequaram aos novos tempos. A gestora de projetos Fuka Kamika, de 27 anos, disse ter mudado drasticamente os seus hábitos de higiene depois que soube da pandemia.

— Muitos restaurantes de Tóquio estão abertos, então as pessoas acham que tudo bem sair para comer ou se reunir, mas não é. Eu não me importava tanto em lavar as mãos e gargarejar antes de comer, mas agora minha mentalidade mudou completamente. Tomo bastante cuidado para não ser infectada pelo coronavírus.

Para se prevenir da Covid-19, Fuka Kamika trocou os encontros semanais com parentes e amigos por videochamadas, nas quais bebem e fazem até hanami (contemplação de flores) virtual “para reduzir o estresse ou sentir a primavera de Tóquio”. Rimsha Bahl, uma indiana de Nova Délhi que mora no subúrbio de Tóquio, começou a cozinhar mais em casa “para evitar bares e restaurantes lotados”, e também deixou de ir à academia de musculação há quase um mês.

— O problema que vejo é que não sei se o Japão está fazendo testes suficientes, apesar de ser uma nação desenvolvida — afirma Bahl, mas pondera que também é preciso considerar as diferenças culturais. —  As pessoas costumam usar máscaras aqui regularmente e não há o costume de abraçar e beijar para cumprimentar. Os japoneses são bons quando se trata de seguir regras,  e os padrões gerais de higiene aqui são muito mais altos em comparação com os 21 países que já visitei.

'Coisa da capital'

Bem longe do epicentro da doença no Japão, em Shimane, no Oeste do país, a situação é bastante diversa. A província é uma das únicas três onde ainda não há casos de Covid-19 confirmados,   e a população vê a doença como algo estrangeiro, incapaz de alcançá-los.

— Aqui, as pessoas comuns estão tratando o coronavírus como "coisa lá da capital" —  conta Felipe Nascimento, 32 anos, coordenador de relações internacionais do Programa de Intercâmbio e Ensino do Japão, que se queixa da falta de cuidados com a higiene entre os locais.

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Segundo ele, os moradores da região se vangloriam de ter “uma cultura mais limpa que a de outros países”.

—  Mas os homens continuam não lavando as mãos depois de usar o banheiro ou, no máximo, molhando as pontas dos dedos. E quando alguns japoneses veem a gente desinfetando as mãos ou lavando elas com o método divulgado, dizem que a gente é "admirável", sugerindo que é um exagero da nossa parte.