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'Nossa incapacidade de agir rápido contra a pandemia nos meteu em uma situação terrível', afirma Adam Tooze

Historiador e economista britânico analisa o ineditismo da crise atual, aponta a capacidade de sobrevivência de Donald Trump e diz ver tripla ameaça para mercados emergentes como o Brasil
Indianos passam por uma rua: países emergentes enfrentam tripla ameaça, a própria pandemia, queda no comércio e fuga de capitais, disse Tooze Foto: NARINDER NANU / AFP
Indianos passam por uma rua: países emergentes enfrentam tripla ameaça, a própria pandemia, queda no comércio e fuga de capitais, disse Tooze Foto: NARINDER NANU / AFP

O historiador e economista britânico Adam Tooze, hoje diretor do European Institute, na Universidade Columbia, é um dos mais prolíficos pensadores em atividade na crise deflagrada pela Covid-19. Assim como em “Crashed” (2018), seu best-seller sobre as implicações políticas da crise econômica de 2008, Tooze mistura economia e política em suas análises.

Em conversa com O GLOBO por videochamada, ele discutiu as consequências da Covid-19 e afirmou: nunca houve uma crise como a atual. Sobre Donald Trump, Tooze observou que, apesar dos desacertos na condução da resposta ao novo coronavírus, não está dado ainda que ele será derrotado na disputa à reeleição, pois suas “aura e personalidade podem perfeitamente triunfar”. O historiador destaca ainda que os países emergentes como o Brasil lutam contra um ameaça tripla, cujo fim não está sob seu controle: a própria pandemia, a queda do comércio global e a maior perda de dinheiro desde os anos 1990.

Diante da crise da Covid-19, como o senhor vê a resposta dos líderes mundiais?

O exemplo positivo mais simples é o de Angela Merkel, que viu um enorme aumento da popularidade, para 70 ou 80%. Isto não vem de um milagre, mas apenas de um sistema de saúde pública resiliente, de uma abordagem baseada em testes em grande escala e de uma política econômica ativa, que explora uma forte condição financeira anterior. Por outro lado,  há alguém como Giuseppe Conte, que é um centrista italiano pró-europeu decente e se vê em uma posição política quase impossível, porque o impacto do vírus é enorme, sua posição financeira é fraca, há oponentes nacionalistas poderosos e irresponsáveis na direita, e, ainda, um contexto europeu que não ajuda. São duas experiências muito contrastantes, que têm pouco a ver com as personalidades políticas em questão, e muito a ver com as circunstâncias.

E Trump?

É nos Estados Unidos que se pode ver uma personalidade política peculiar dirigindo a narrativa da crise. O que é notável é como ele consegue expressar quase todos os dias as frustrações do público em geral com a situação. Todas as opções são terríveis, entre uma paralisação geral e não paralisar. Trump não é bom em escolher entre opções terríveis. Assim, ele oscila. Ele tentou fazer as duas coisas, sem entender que isso não é possível. A situação se sustenta principalmente pela burocracia dos EUA. Ela falhou em oferecer uma resposta rápida no início, mas, em áreas como o Tesouro e o Banco Central, tem produzido políticas competentes, em um Estado ainda muito poderoso, com muitos recursos.

Como avalia os efeitos políticos deste cenário?

O resultado político da situação é de certa forma, nulo, no sentido de que as pessoas que desprezam Trump e nunca votariam nele têm suas opiniões confirmadas. Sua base continua acreditando que ele está fazendo um bom trabalho. Eles vivem em uma bolha tão manipulada e estão tão convencidos de que é vítima de uma conspiração progressista que nada do que acontece e nenhuma imbecilidade que profere muda isso, seja até mesmo injetar detergente. Há uma situação um pouco congelada, onde a política não responde ao fracasso, à incompetência e à incoerência extraordinárias. Nada muda.

Quais devem ser os efeitos da crise econômica sobre essa aprovação inabalável de Trump?

Nós ainda não sabemos a resposta. A crise econômica nos EUA é dramática. É possível que o colapso econômico seja o prego no caixão da Presidência de Trump. Por outro lado, não devemos subestimar a capacidade da política de interferir em tudo nos EUA. Trump colocou o próprio nome nos cheques que foram enviados a milhões de americanos. A aura e personalidade de Trump podem perfeitamente triunfar: a situação econômica e o desemprego podem ser atribuídos aos progressistas, que, se dirá, foram excessivamente reguladores e queriam fechar tudo, ou a um vírus que veio da China, e o heroico governo lutou como podia para enfrentá-lo.

Antes da crise, Trump baseava seu discurso em uma taxa histórica de desemprego, crescimento ininterrupto e coisas assim. O quão importante de fato é a economia para a percepção de seu governo?

Se você observar os dados, é extraordinária a avaliação subjetiva do bem-estar econômico nos EUA. Há uma diferença de 15 a 20 pontos percentuais de acordo com  o alinhamento partidário. Um dia depois de Trump ser eleito, as pessoas que se identificam como republicanas subitamente se sentiram muito melhores em termos econômicos, e isso continuou desde então. Apenas tê-lo na Casa Branca faz com que uma fração significativa da população americana se sinta melhor sobre as circunstâncias econômicas materiais, independentemente das realidades econômicas em que realmente habitam, sem que nada de fato tenha acontecido na economia.  A sensação de que alguém na posição de poder ouve você e é como você, aprecia os seus mesmos interesses e desejos e não os despreza, faz com que todas as circunstâncias materiais de sua vida sejam melhores. A mudança de horizonte já é suficiente.

Voltando à pandemia, ao redor do mundo, muita gente diz que que a cura não pode ser pior do que a doença. Como você vê esses discursos?

Eles refletem a terrível situação em que nos metemos, como resultado de nossa incapacidade de agir rapidamente. A pandemia tem a mesma lógica exponencial das mudanças climáticas, mas opera muito mais velozmente. Se você agir rapidamente como a Coreia do Sul ou mesmo a China, as compensações são razoáveis. Você contém a pandemia a um custo que não é excessivo em termos econômicos. Evita assim enfrentar a pergunta que enfrentamos no Ocidente: você quer arruinar a economia ou salvar milhões de vidas?  Não devemos ter ilusões sobre a escala dos custos econômicos. Ao menos 26 milhões de americanos perderam o emprego, estamos entrando em uma recessão que certamente vai durar até 2021 ou 2022.  É um custo que, se fosse citado para o combate às mudanças climáticas, por exemplo, teria sido descartado como completamente inviável.

E como fazer esse cálculo?

Todo sistema de saúde do mundo realiza cálculos todos os anos sobre o valor e o custo de salvar uma vida. Os sistemas de saúde gerenciados racionalmente fazem medições como essa. Mas a escala do problema, a velocidade com que nos atingiu e outros aspectos dessa ameaça significam que ela explodiu esse cálculo.  É historicamente sem precedentes. Nunca fizemos algo assim, então você não pode culpar as pessoas por fazerem essa pergunta. Não é óbvio que sabemos a resposta. Mas o que está claro é que tomamos uma decisão antes, e que ela agora tem custos históricos irrevogáveis.

Considerando as decisões que foram tomadas, existe algum caminho que indicaria?

Acho que sabemos qual é a solução, certo? Temos que agir o mais rápido possível para chegar a um modelo do tipo alemão ou sul-coreano. Trata-se de concentrar tudo na capacidade de testagem, de ser capazes de testar milhões de pessoas. Até conseguir fazer isso, estamos um pouco paralisados. Em termos econômicos, é evidente o que temos que fazer: gastar em escala gigantesca. Não de fato para fins de estímulo, mas de suporte à vida. Idealmente, haveria uma cooperação internacional, para garantir que os danos ao sistema comercial global não sejam tão permanentes, e, também, para amortecer os danos às economias mais vulneráveis do mundo, começando pelas mais pobres e menos desenvolvidas, mas também garantindo que as principais economias emergentes, incluindo o Brasil, possam obter acesso ao financiamento de curto prazo.

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Como vê as situações dos mercados emergentes?

Lutam para conter uma ameaça tripla. A mais importante é a própria epidemia, que afetará severamente as populações vulneráveis. A Índia tem o segundo maior número de idosos do mundo, sem um sistema de saúde robusto. A África do Sul tem uma enorme população que vive com HIV. Nas favelas, não há condições de um distanciamento efetivo e sustentável em longo prazo.

E a segunda ameaça?

É um choque enorme no comércio. A própria designação de mercados emergentes é uma história de sucesso, de países que costumavam ser rotulados como de Terceiro Mundo ou economias em desenvolvimento. Isso dependeu do comércio, um modelo que produz desigualdades, muita instabilidade e exposição ao risco, mas gerou riqueza considerável. Não está claro quais partes do comércio internacional serão retomadas, nem como. Pode demorar muito a haver um aumento na demanda dos EUA ou da China.

E a terceira, finalmente?

Há ainda um enorme aperto financeiro, a maior perda de dinheiro dos mercados emergentes desde a década de 1990, que põe suas empresas sob uma pressão enorme. Isto levanta a questão de se existe alguma alternativa. Antes da crise, não estava claro se sabíamos qual era o futuro dos fornecedores de commodities, porque as tensões entre a China e os EUA atingiam um nível muito sério.

E o que esperar do futuro para estes mercados?

Não está claro qual será a estrutura para o desenvolvimento futuro dos mercados emergentes, nem que tenham muito controle sobre isso. Tampouco parece que há base para um grande acordo macroeconômico entre os EUA e a China, não sob Trump. Mas a avaliação dos fundamentos econômicos depende do horizonte, da narrativa, na qual estão inseridos. E não tenho certeza de que sabemos qual é a narrativa dos mercados emergentes decorrente dessa crise, de onde virá um novo caminho.

O senhor acompanha o que acontece no Brasil? Vê algum sinal aí de fora?

Provavelmente não devo me aventurar a opinar sobre isso. Eu vejo os gráficos brasileiros quase todos os dias, mas seria irresponsável da minha parte arriscar uma opinião sobre como interpretá-lo. Eu lembro do boom no mercado ligado a Bolsonaro, lembro do entusiasmo que havia no mercado. Era possível ouvir isso de comentaristas de negócios, otimismo sobre o governo de Bolsonaro. Isso sempre me pareceu surpreendente, cínico e provavelmente míope, mas provavelmente é melhor não responder a uma pergunta sobre o Brasil.

Esta crise pode ser comparada a alguma outra?

Esta crise foi um choque que ninguém realmente considerou antes. A de 2008 e 2009 foi muito mais familiar: um setor imobiliário inflado demais, com um sistema financeiro de alavancagem maciça que explodiu e levou consigo grande parte da economia mundial. A da Covid-19 não é algo que tínhamos previsto em nosso cálculo. Eu procurei para ver se consigo encontrar artigos econômicos sobre a Sars ou sobre a Mers, por exemplo, ou sobre mortes sobre gripe suína. E não há muitos, há pouca coisa sobre estabilidade financeira, implicações do risco de pandemia. Portanto, isso é inesperado do ponto de vista da governança econômica.