Mundo Coronavírus

Os 'caçadores de variantes': Por dentro do esforço da África do Sul para estancar mutações perigosas

Iniciativa que une cientistas em laboratório de última geração e profissionais de saúde locais permitiu ao país detectar cepa Ômicron
Pessoas esperam para serem vacinadas em Orange Farm, na África do Sul Foto: JOÃO SILVA / NYT/3-12-21
Pessoas esperam para serem vacinadas em Orange Farm, na África do Sul Foto: JOÃO SILVA / NYT/3-12-21

NTUZUMA, África do Sul — Há alguns meses, Sizakele Mathe, que faz trabalho voluntário de saúde em um município nos limites da cidade de Durban, foi notificada por uma clínica local de que uma vizinha havia parado de pegar seus medicamentos. Foi um sinal de alerta de que a mulher provavelmente havia parado de tomar os comprimidos que mantêm o HIV sob controle.

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Isso era uma ameaça à saúde dela —  e, na pandemia de Covid-19, poderia ser também um risco para a saúde das outras pessoas. A clínica enviou Mathe para subir uma colina, seguir por um caminho estreito e tentar fazer a mulher voltar a seguir o tratamento.

Mathe faz parte de uma campanha nacional que vai de porta em porta na África do Sul. É um esforço para estancar o surgimento de novas variantes do coronavírus, como a Ômicron , que foi identificada no país no fim de novembro e abalou o mundo na semana passada, já sendo detectada em cinco continentes.

A outra metade dos esforços ocorre em um laboratório de última geração a 40 km de distância dali, na Plataforma de Inovação e Sequenciamento de Pesquisa KwaZulu-Natal, em Durban. Lá, os cientistas sequenciam os genomas de milhares de amostras de coronavírus todas as semanas. O laboratório Krisp, como é conhecido, integra uma rede nacional de pesquisadores que identificou as variantes Beta e Ômicron, com base na experiência adquirida nas décadas de luta contra o HIV.

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Esta combinação de alta tecnologia e trabalho base representa uma das linhas de frente na batalha mundial contra o coronavírus. Na sexta, a rede de pesquisa relatou a um mundo que espera por novas informações que a variante parece se espalhar duas vezes mais rápido que a Delta — considerada até o momento a cepa mais contagiosa do vírus. Até o momento, contudo, não há relatos de mortes causadas pela Ômicron.

Os pesquisadores do Krisp são líderes globais em filogenética viral, o estudo da relação evolutiva entre os vírus. Eles rastreiam mutações da Covid, identificam pontos críticos de transmissão e fornecem dados cruciais sobre o que está infectando quem — algo para ajudar a conter a disseminação.

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Riscos de mutações

Desde o início da pandemia, eles têm examinado de perto como o Sars-CoV-2, o causador da Covid-19, muta na África do Sul. A preocupação, em particular, é com as oito milhões de pessoas que vivem com HIV no país, ou 13% da população.

Quando as pessoas com HIV recebem a prescrição de um antirretroviral eficaz e o tomam de maneira consistente, seus corpos suprimem quase completamente o vírus. Mas se as pessoas com HIV não forem diagnosticadas, não tiverem tratamento prescrito, ou não tomarem os medicamentos de forma consistente todos os dias, o HIV enfraquece seu sistema imunológico. E então, se pegarem o coronavírus, pode levar semanas ou meses antes que o novo vírus seja eliminado de seus corpos.

Quando o coronavírus vive tanto tempo em seus sistemas, a probabilidade de sofrer várias mutações consecutivas aumenta. E, se transmitirem o vírus mutante, uma nova variante entra em circulação.

— Temos motivos para acreditar que algumas das variantes que estão surgindo na África do Sul podem estar associadas diretamente ao HIV — disse Tulio de Oliveira, o principal investigador da rede nacional de monitoramento genético.

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Nos primeiros dias da pandemia, as autoridades de saúde da África do Sul se prepararam para aumentar as taxas de mortalidade de pessoas com HIV:

— Basicamente, estávamos criando cenários horríveis de que a África seria dizimada — disse Salim Abdool Karim, epidemiologista que chefia o instituto de aids do qual o Krisp faz parte. — Mas nada disso aconteceu. A principal razão é que o HIV é mais comum entre os jovens, enquanto o coronavírus atinge mais fortemente os idosos.

Uma infecção por HIV torna uma pessoa cerca de 1,7 vezes mais provável de morrer de Covid — um risco elevado, mas que empalidece em comparação com o risco de pessoas com diabetes, que têm 30 vezes mais probabilidade de morrer.

— Assim que percebemos que essa era a situação, começamos a entender que nossos verdadeiros problemas com o HIV no meio de Covid eram a perspectiva de que pessoas gravemente imunocomprometidas levariam a novas variantes — disse Abdool Karim.

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Novas variantes

Pesquisadores do Krisp mostraram que isso aconteceu pelo menos duas vezes. No ano passado, eles rastrearam uma amostra do vírus até uma mulher de 36 anos com HIV que recebia tratamento ineficaz. Passaram 216 dias até que o coronavírus deixasse de ser detectado no seu corpo — intervalo no qual 32 mutações diferentes foram detectadas.

Em novembro, Tulio de Oliveira e sua equipe rastrearam uma amostra de coronavírus com dezenas de mutações em uma parte diferente do país, Cabo Ocidental, onde outra paciente também reagia mal ao tratamento contra o HIV. O coronavírus permaneceu em seu corpo por meses e produziu dezenas de mutações. Quando essas mulheres receberam medicamentos eficazes e foram orientadas sobre como tomá-los de maneira adequada, o vírus deixou seus organismos rapidamente.

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A origem da Ômicron ainda é desconhecida. Pessoas com HIV não são as únicas cujos sistemas imunológicos podem inadvertidamente dar ao coronavírus maiores chances de sofrer mutações: isso pode acontecer em qualquer pessoa que esteja imunossuprimida, como pacientes transplantados e aqueles que passam por tratamento de câncer.

No momento em que a equipe do Krisp identificou o segundo caso de uma pessoa com HIV que produziu mutações do coronavírus, havia mais de uma dúzia de relatos do mesmo fenômeno na literatura médica em outras partes do mundo.

Os vírus também sofrem mutação em pessoas com sistema imunológico saudável. A diferença para pessoas com HIV, ou outra doença imunossupressora, é que, como o vírus permanece em seus sistemas por muito mais tempo, o processo de seleção natural tem mais tempo para favorecer mutações que escapam à imunidade.

O período de replicação típico em uma pessoa saudável seria de apenas algumas semanas, em vez de muitos meses — menos replicações significam menos oportunidades para novas mutações. E porque a África do Sul tem tantas pessoas com HIV, e porque esta nova pandemia atingiu fortemente aqui, há uma urgência particular para bloquear as variantes.

Iniciativas comunitárias

É aí que entram os esforços de agentes comunitários de saúde, como Mathe. Em um dia típico de trabalho, ela caminha por estradas de terra, com um celular antigo e uma lista mental de quem apareceu na clínica ultimamente, quem não aparenta estar bem e quem precisa de uma visita. Mathe, ela mesma diagnosticada com o HIV há 13 anos e em tratamento desde então, recebe US$ 150 (R$ 848) por mês.

Silendile Mdunge, uma mulher magra de 36 anos e mãe de três filhos, parou de tomar seus antirretrovirais durante a terceira de Covid que atingiu a África do Sul entre maio e julho. Seus medicamentos não estavam mais sendo entregues em um ponto de coleta comunitário porque muitos profissionais de saúde foram transferidos. Em vez disso, ela deveria recolhê-los em uma clínica a cerca de 14 km de distância.

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Temendo contrair o vírus nos táxis compartilhados ou ficar no que ouviu dizer serem filas enormes, ela parou de tomar a medicação por quatro meses. Voltou a fazer o tratamento após Mathe aparecer na pequena casa, construída com restos de madeira, que divide com sete parentes.

— Ela me disse que as pessoas que deixaram de fazer tratamento não estão mais vivas, que devo pensar em meus filhos, que eu poderia morrer — disse Mdunge, listando coisas que já sabia, ao menos no abstrato, serem possíveis.

Foi a persistência de Mathe, contudo, que tornou os avisos difíceis de ignorar. Revirando os olhos, deu a entender que voltou com o tratamento para que a voluntária, que ouvia tudo com um sorriso de canto de boca, parasse de perturbá-la.

— Se você não tivesse amor pelas pessoas, não faria este trabalho — disse ela.

Dos oito milhões de sul-africanos com HIV, 5,2 milhões estão em tratamento, mas apenas dois terços deles vêm conseguindo suprimir o vírus adequadamente com os medicamentos. O problema se estende além das fronteiras sul-africanas: 25 milhões de pessoas vivem com o vírus na África Subsaariana, mas em apenas 17 milhões a carga viral está suprimida ou indetectável.

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Trabalho dobrado

O laboratório Krisp está sequenciando amostras de coronavírus de toda a África para preencher algumas das lacunas de países que não têm capacidade própria para fazê-lo. A rede de vigilância da África do Sul e o sequenciamento genômico são abrangentes o suficiente para que seus pesquisadores sejam os primeiros a detectar até mesmo casos que não se originam no país.

O grande medo é que as variantes tenham escape imunológico, ou seja, a capacidade de driblar os anticorpos adquiridos por meio das vacinas ou por infecções prévias.  À medida que mais e mais pessoas na África do Sul são vacinadas contra a Covid, existe a possibilidade de uma variante sofrer mutações no corpo de uma pessoa vacinada.

— Você tem uma situação com potencial para criar variantes realmente desagradáveis — disse Abdool Karim, que ajudou a liderar a resposta da Covid na África do Sul.

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Variantes anteriores surgiram quando poucas pessoas tiveram acesso à vacinação, mas agora a África do Sul aplicou a injeção em mais de um terço de seus cidadãos. Se as pessoas vacinadas com HIV não têm acesso ou não tomam seus antirretrovirais, aumentam as oportunidades para que o vírus sofra mutações que escapem das vacinas.

— Agora, muitos desses pacientes com HIV foram vacinados, então têm respostas imunológicas — disse Abdool Karim. — Portanto, se eles gerarem uma nova variante, ela escapará da resposta imunológica.

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Risco evitável

Túlio de Oliveira disse estar menos preocupado com uma variante resistente à vacina que surja na África do Sul do que, por exemplo, com uma cepa que venha a emergir nos Estados Unidos, em bolsões com grande taxa de pessoas com HIV que não recebem tratamento e baixa cobertura vacinal. São regiões que, no geral, têm redes de vigilância sanitária mais fracas que a sul-africana.

— A probabilidade é que nós detectemos [a variante] primeiro — disse ele, rindo.

A diferença com o risco acentuado de mutação do vírus em pessoas com HIV, ele apontou, é que é um problema com solução pronta: bastaria que todos tivessem acesso a tratamentos eficazes. O mesmo não é aplicável para pacientes com câncer ou transplantados, ele disse.

Acima de tudo, a resposta para acabar com a ameaça da variante é minar a transmissão do coronavírus:

— Vacinar, vacinar, vacinar a população da África — disse ele, afirmando que pessoas com HIV devem receber prioritariamente doses de reforço. — Minha preocupação com é o nacionalismo da vacina ou a acumulação da vacina.

Até agora, os esforços da África do Sul para lidar com a questão da variante e ser transparente sobre ela custaram caro, na forma de proibição de voos e isolamento global:

— Como cientistas, especialmente nesta linha de frente, debatemos como minimizar o problema do HIV — afirmou o médico na semana passada, em seu laboratório. — Se formos muito contundentes, também corremos o risco, de novo, de grande discriminação e do fechamento de fronteiras e medidas econômicas. Mas, se não formos muito vocais, teremos mortes desnecessárias.