Mundo Coronavírus

Os segredos minuciosos de como a Alemanha se preparou para enfrentar o coronavírus

Rastreamento de casos, testes em massa e isolamento explicam sucesso no combate à Covid-19 no país
Um homem usa uma máscara durante um protesto para migrantes também serem atendidos em frene à Torre de TV de Berlim Foto: TOBIAS SCHWARZ / AFP
Um homem usa uma máscara durante um protesto para migrantes também serem atendidos em frene à Torre de TV de Berlim Foto: TOBIAS SCHWARZ / AFP

MUNIQUE — Em um almoço de janeiro em uma empresa de autopeças, um trabalhador virou-se para um colega e pediu para que ele lhe passasse o sal. Assim como o saleiro, eles compartilharam também o novo coronavírus , concluíram os cientistas. O fato de sua troca casual ter sido documentada é resultado de um intenso escrutínio, parte de uma rara história de sucesso na luta global contra o vírus.

Os colegas de trabalho foram os primeiros elos do que seria a primeira cadeia documentada de várias transmissões entre pessoas fora da Ásia da Covid-19, a doença causada pelo coronavírus.

Os funcionários moram em Stockdorf, uma cidade da Alemanha de 4 mil habitantes perto de Munique, na Baviera, e trabalham na fornecedora de autopeças Webasto Group. A empresa foi posta sob uma lupa global depois da revelação de que uma de suas funcionárias, uma chinesa, pegou o vírus e o levou consigo até a sede da Webasto. Lá, o vírus foi passado para colegas — inclusive, descobririam os cientistas, uma pessoa almoçando na cantina com quem a paciente chinesa não tinha contato.

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A cena da cantina de 22 de janeiro foi uma de dezenas de incidentes mundanos que os cientistas registraram em uma caçada médica para rastrear, testar e isolar os trabalhadores infectados, empreendida pelo governo regional da Baviera para impedir que o vírus se espalhasse.

Essa caçada ajudou a Alemanha a ganhar um tempo crucial para construir suas defesas contra a Covid-19.

O tempo que a Alemanha ganhou pode ter salvado vidas, dizem os cientistas. Seu primeiro surto de Covid-19 transmitido localmente começou mais cedo que o da Itália, mas a Alemanha registrou muito menos mortes. A primeira transmissão local detectada pela Itália foi em 21 de fevereiro. Neste dia, a Alemanha já havia iniciado uma campanha de informações do Ministério da Saúde e desenvolvido uma estratégia do governo para combater o vírus, que dependia de testes generalizados. Até agora, na Alemanha, mais de 2.100 pessoas morreram da Covid-19. Na Itália, com uma população menor, o total excede 17.600.

— Aprendemos que precisamos rastrear meticulosamente cadeias de infecção para interrompê-las — disse à Reuters Clemens Wendtner, médico que tratou pacientes em Munique.

Wendtner se uniu a alguns dos principais cientistas da Alemanha para enfrentar o que ficou conhecido como “o núcleo de Munique” e aconselhou o governo da Baviera sobre como responder. A Baviera foi a primeira unidade alemã a decretar o isolamento, o que ocorreu em todo o país em 22 de março.

Cientistas, incluindo o diretor médico da Inglaterra, Chris Whitty, atribuíram aos testes precoces e generalizados da Alemanha o crédito pelo retardamento da propagação do vírus.

— Todos sabemos que a Alemanha avançou em termos de capacidade de testar o vírus e há muito a aprender com isso — afirmou ele na TV no início desta semana.

Christian Drosten, o principal virologista do hospital Charite de Berlim, disse que a Alemanha foi ajudada por ter um núcleo claro e precoce.

— Como tínhamos essa grupo de Munique logo no início, ficou claro que, com um grande esforço, poderíamos inibir ainda mais a disseminação — disse ele em um podcast diário da rádio NDR sobre o coronavírus.

Drosten, que se recusou a ser entrevistado para esta reportagem, foi um dos mais de 40 cientistas envolvidos no exame do núcleo de Munique. O trabalho deles foi documentado de forma preliminar em um documento de trabalho no final do mês passado, enviado ao The Lancet, o principal periódico de medicina do mundo. O documento, ainda não revisado por pares, foi compartilhado no site da NDR.

A paciente zero

Foi na segunda-feira, 27 de janeiro, que Holger Engelmann, presidente da Webasto, disse às autoridades que uma de seus funcionárias havia feito um teste que deu resultado positivo para o novo coronavírus. A mulher, que mora em Xangai, havia participado de vários dias de workshops e de reuniões na sede da Webasto.

Os pais da mulher, de Wuhan, a visitaram antes de ela viajar em 19 de janeiro para Stockdorf, segundo o jornal. Enquanto estava na Alemanha, ela sentiu dores incomuns no peito e nas costas e esteve cansada por toda a estadia. Apesar disso, ela atribuiu os sintomas ao jet lag.

Ela ficou febril no voo de volta para a China, fez um teste que deu positivo após o pouso e foi hospitalizada. Seus pais também mais tarde foram confirmados com a doença. Ela contou aos gerentes o resultado e eles enviaram um e-mail ao presidente da empresa.

Na Alemanha, Engelmann disse que montou imediatamente uma equipe de crise que alertou as autoridades médicas e começou a tentar rastrear membros da equipe que estiveram em contato com sua colega chinesa.

O próprio presidente estava entre eles.

— Apenas quatro ou cinco dias antes de receber a notícia, eu tinha apertado a mão dela — disse ele.

Agora conhecido como "Caso Número 0" da Alemanha, a paciente de Xangai é uma "funcionária de longa data, de plena confiança em gerenciamento de projetos" que Engelmann conhece pessoalmente, disse ele à Reuters. A empresa não revelou sua identidade ou a de outras pessoas envolvidas, dizendo que o anonimato incentivou a equipe a cooperar nos esforços da Alemanha para conter o vírus.

A tarefa de encontrar quem teve contato com ela foi facilitada pelos calendários eletrônicos dos trabalhadores da Webasto — na maioria das vezes, tudo o que os médicos precisavam era examinar as atribuições da equipe.

— Foi um golpe de sorte — disse Wendtner, o médico que tratou os pacientes de Munique. — Recebemos todas as informações de que precisamos da equipe para reconstruir as cadeias de infecção.

Por exemplo, o caso número 1 — a primeira pessoa na Alemanha a ser infectada pela chinesa — sentou-se ao lado dela em uma reunião em uma pequena sala em 20 de janeiro, escreveram os cientistas.

Onde os dados do calendário estavam incompletos, disseram os cientistas, eles costumavam usar o sequenciamento genômico completo, que analisa as diferenças no código genético do vírus de diferentes pacientes, para mapear sua propagação.

Seguindo todas essas conexões, eles descobriram que o caso número 4 havia entrado em contato várias vezes com a paciente de Xangai. Este mesmo caso número 4 sentou-se lado a lado com um colega na cantina.

Quando o colega voltou a pedir emprestado o sal, deduziram os cientistas, o vírus passou entre eles. O colega então tornou-se o caso 5.

Webasto disse em 28 de janeiro que estava fechando temporariamente sua sede em Stockdorf. Entre 27 de janeiro e 11 de fevereiro, um total de 16 casos de Covid-19 foi identificado no núcleo de Munique. Todos, exceto um, desenvolveram sintomas.

Todos aqueles que deram positivo foram encaminhados ao hospital para serem observados e para os médicos aprenderem com a doença.

País fechado

A Baviera paralisou suas atividades públicas em meados de março. Desde então, a Alemanha fechou escolas, lojas, restaurantes, playgrounds e instalações esportivas, e muitas empresas fecharam para ajudar a causa.

Isso não quer dizer que a Alemanha tenha derrotado a Covid-19.

Sua taxa de mortalidade por coronavírus de 1,9%, com base nos dados coletados pela Reuters, é a mais baixa entre os países mais afetados, se comparada com a de 12,6% na Itália. Mas especialistas dizem que mais mortes na Alemanha são inevitáveis.

— A taxa de mortalidade aumentará —  disse Lothar Wieler, presidente do Instituto Robert Koch da Alemanha para doenças infecciosas, a principal entidade de saúde pública do país.

A diferença entre a Alemanha e a Itália é parcialmente estatística: a taxa da Alemanha parece muito menor porque a população foi amplamente testada. A Alemanha realizou mais de 1,3 milhão de testes, segundo o Instituto Robert Koch. Agora está realizando até 500 mil testes por semana, disse Drosten. A Itália realizou mais de 807 mil testes desde 21 de fevereiro, de acordo com a Agência de Proteção Civil. Com algumas exceções, a Itália só testa pessoas levadas ao hospital com sintomas claros e graves.

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O governo da Alemanha está usando as semanas obtidas pela experiência de Munique para dobrar o número de leitos de terapia intensiva, de cerca de 28 mil. O país já possui o maior número de leitos de cuidados intensivos per capita da Europa, segundo um estudo de 2012.

Mesmo isso pode não ser suficiente, no entanto. Um documento do Ministério do Interior enviado a outros departamentos do governo em 22 de março incluiu o pior cenário prevendo mais de 1 milhão de mortes.

Outro cenário previu 12 mil mortes —  com mais testes após o relaxamento parcial das restrições. Esse cenário foi apelidado de "martelo e dança", termo cunhado pelo blogueiro Tomas Pueyo. Refere-se ao “martelo” de medidas agressivas rápidas por algumas semanas, incluindo um grande distanciamento social, seguido pela “dança” de calibrar essas medidas de acordo com a taxa de transmissão.

O governo alemão argumentou que, no cenário “martelo e dança”, o uso de big data e rastreamento de localização é inevitável. Esse monitoramento já está se mostrando controverso na Alemanha, onde as memórias da polícia secreta da Stasi da Alemanha Oriental e de seus informantes ainda estão frescas em muitos.

Um projeto de plano de ação subsequente compilado pelo governo propõe o rastreamento rápido de cadeias de infecção, o uso obrigatório de máscaras em público e os limites de reuniões para ajudar a permitir um retorno gradual à vida normal após o isolamento restrito. O governo está apoiando o desenvolvimento de um aplicativo para smartphone para ajudar a rastrear infecções.

A Alemanha disse que reavaliará o bloqueio após o feriado da Páscoa; para a fabricante de autopeças no centro de seu primeiro surto, a crise imediata acabou. O escritório de Webasto reabriu.

Todas as 16 pessoas que pegaram o Covid-19 lá se recuperaram.