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Pretensão de liderança do México enfrenta resistência dos EUA e divisão entre governos latino-americanos

Discurso recente em López Obrador sugeriu algo 'similar a uma União Europeia' na região levantou debate sobre capacidade do país de exercer papel coordenador
Chanceler mexicano, Marcelo Ebrard, dá as boas vindas a integrantes de uma equipe de robótica do Afeganistão, que deram entrada em pedidos de vistos humanitários Foto: MEXICO'S FOREIGN RELATIONS MINIS / via REUTERS
Chanceler mexicano, Marcelo Ebrard, dá as boas vindas a integrantes de uma equipe de robótica do Afeganistão, que deram entrada em pedidos de vistos humanitários Foto: MEXICO'S FOREIGN RELATIONS MINIS / via REUTERS

Desde que o presidente Andrés Manuel López Obrador aproveitou a presença de chanceleres da Comunidade de Estados Latino-americanos (Celac) na Cidade do México, em julho, para afirmar que chegou a hora de “construir algo similar à União Europeia, mas apegado à nossa história”, acadêmicos se perguntam se o México tem pretensões e condições de assumir um papel de líder regional.

Especialistas mexicanos ouvidos pelo GLOBO foram céticos, embora tenham reconhecido que a ausência do Brasil — que se retirou da Celac em 2020 — representa uma oportunidade, e apontaram limitações claras para as aspirações pela primeira vez expressas por López Obrador, começando pela resistência de seu vizinho e principal parceiro comercial, os Estados Unidos.

Duas semanas depois do pronunciamento do chefe de Estado, em evento convocado para comemorar 238 anos do nascimento de Simón Bolívar, chegou à capital mexicana uma missão de alto nível da Casa Branca, chefiada pelo conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan.

'Fique no México'

Desde então, López Obrador, conhecido pela sigla AMLO , não se referiu mais ao projeto de uma UE latino-americana nem questionou, como fez no discurso, “a política dos últimos dois séculos, caracterizada por invasões para colocar ou tirar governantes de acordo com a vontade da superpotência”. Tampouco defendeu mais a “proeza” de Cuba ao resistir ao bloqueio e às sanções aplicadas pelos EUA, ou atacou a Organização dos Estados Americanos (OEA).

Surgiram problemas mais emergenciais para o governo mexicano, entre eles a decisão da Suprema Corte dos EUA de reativar a política imigratória oficialmente denominada Protocolo de Proteção ao Migrante, impulsionada pelo governo do então presidente Donald Trump (2017-2021). O programa é chamado popularmente de “fique no México”, já que obriga os imigrantes a esperarem a resposta a seus pedidos de asilo nos EUA do lado mexicano da fronteira. O presidente Joe Biden disse, durante a campanha, ser contra esta política, e tenta reverter a medida do tribunal máximo, enquanto negocia com o governo mexicano novos protocolos de proteção aos imigrantes.

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Com o problema migratório ainda sem solução, a fronteira sul com o México se transformou em muro de contenção de latino-americanos que querem entrar nos EUA. Com este pano de fundo, é difícil pensar numa liderança do México na região, ainda mais considerando que López Obrador sempre deu pouca importância à política externa em seu governo, iniciado em 2018.

— Desde o começo do governo, faltaram uma visão geopolítica e um interesse pelo que acontece fora do México. Hoje, o chanceler Marcelo Ebrard busca essa liderança mexicana como parte de sua pré-campanha para ser o sucessor de López Obrador. Com essa ideia de criar um novo eixo bolivariano, consegue apoios em setores esquerdistas, sendo ele um moderado — explica Cristian Castaño, diretor- geral do Centro de Estudos Estratégicos e de Governo do México, que participará da XVIII Conferência de Segurança Internacional do Forte de Copacabana, que acontece on-line nos dias 16 e 17 de setembro.

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Dentro do governo mexicano, ressalta Castaño, existem diferentes facções. A ala mais radical da esquerda mexicana ficou eufórica com o discurso de 24 de julho passado, e para Ebrard, que disputa a sucessão interna com a prefeita do Distrito Federal, Claudia Sheinbaum, representa um caminho interessante para ampliar sua rede de apoios no partido governista, o Movimento de Regeneração Nacional (Morena).

— O discurso do presidente confirmou que nossa política externa está direcionada à América Latina, mas López Obrador precisa fortalecer as relações com os EUA. E como se pode ser líder de uma região tão fragmentada, e sem o Brasil? — pergunta Ana Covarrubias, professora e pesquisadora do Colégio do México.

Para ela, “o que existem são esforços específicos”, como o oferecimento para que as negociações entre o governo de Nicolás Maduro e a oposição ocorram no México. Na visão de José Antonio Crespo, analista e autor do livro “AMLO na balança: da esperança à incerteza”, o governo mexicano gostaria de ocupar o espaço abandonado voluntariamente pelo Brasil de Jair Bolsonaro, “mas, em todo caso, poderia ser uma liderança bolivariana, não latino-americana”.

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O discurso do chefe de Estado mexicano não gerou grandes expectativas entre ex-embaixadores do país, como Olga Pellicer, professora de Relações Internacionais no Instituto Tecnológico Autônomo do Mexico. Na opinião de Pellicer, não existem razões sólidas para acreditar que López Obrador finalmente impulsionará uma política externa vigorosa, na segunda metade de seu mandato.

— A desintegração latino-americana é um terreno fértil para pensar em novas lideranças, faz falta uma cooperação entre os países da região. Mas sou cética, em primeiro lugar porque não temos recursos, e em segundo porque AMLO nunca teve essa vocação — frisa a ex-embaixadora.

'Pode parecer utopia'

O chefe de Estado mexicano encerra seu discurso reconhecendo que suas propostas “podem parecer uma utopia, mas vale a pena tentar”. A sensação entre acadêmicos mexicanos é de que o sonho, se de fato existiu, foi efêmero e dificilmente sairá do papel.

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As ambições do chanceler Ebrard são claras, e seu desejo de tornar o México o motor de um processo de integração pós- pandemia são reais. Também é real a vantagem que o México tem em relação aos demais países da região, mergulhados, na grande maioria dos casos, em crises econômicas e políticas que tornam inviável qualquer projeto de liderança além de suas fronteiras —a Argentina é um claro exemplo. O terreno é fértil, como aponta Olga, mas as limitações também, reforça Guadalupe González, professora do Colégio do México.

— O contexto é favorável, e o México viu uma oportunidade. Mas a grande incógnita é a relação com os EUA de Joe Biden e até que ponto essa relação vai condicionar o projeto de projeção regional mexicano, se é que ele existe — conclui Guadalupe.

Em setembro, a Cidade do México será sede de uma nova rodada de negociações entre governo e oposição venezuelanos. No mesmo mês, será realizada uma cúpula de chefes de Estado da Celac. As atenções estarão direcionadas ao país e, sobretudo, às declarações e posicionamentos de seu presidente.