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Protestos contra reforma tributária na Colômbia refletem descontentamento social com governo de Iván Duque

Efeitos sociais causados pela Covid-19, com aumento dos níveis de desemprego e pobreza, e o atraso nas campanhas de vacinação em massa, entre outros fatores, serviram para canalizar ira da população
Um manifestante ferido é levado em uma motocicleta por outros homens durante confrontos com a polícia em protesto em Cali, Colômbia Foto: PAOLA MAFLA / AFP
Um manifestante ferido é levado em uma motocicleta por outros homens durante confrontos com a polícia em protesto em Cali, Colômbia Foto: PAOLA MAFLA / AFP

Um polêmico projeto de reforma tributária, apresentado pelo governo colombiano ao Congresso na semana passada, levou milhares de pessoas às ruas nos últimos três dias, em protestos que canalizaram o descontentamento popular contra o presidente Iván Duque. Nesta sexta-feira, além de enviar mais tropas policiais e militares para a cidade de Cali, no sudoeste do país, Duque anunciou que vai modificar o texto, mas não vai retirá-lo do parlamento.

O governo reforçou a segurança para acabar com os distúrbios e atos de vandalismo após um dia violento que terminou com uma pessoa morta e mais de 40 feridos em Cali.

Os sindicatos colombianos convocaram, na quarta-feira, uma série de protestos nas principais cidades do país para exigir que o governo retire o projeto de reforma para aumentar os impostos. Para analistas, no entanto, a medida é apenas a ponta do iceberg de uma série de descontentamentos, dentre eles, os efeitos sociais que a pandemia da Covid-19 causou no país, que já registrou mais de 73 mil mortes e levou a um aumento dos níveis de desemprego e pobreza.

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— Os protestos pela reforma tributária são uma nova expressão da grande insatisfação de diversos setores da sociedade colombiana diante de um governo que não soube explicar a importância da reforma para enfrentar os desafios estruturais do país e cobrir o lacuna fiscal causada pela pandemia e por reformas fiscais anteriores deste mesmo governo — explica o analista colombiano Borja Paladini, da Universidade do País Basco, na Espanha.

Na quarta-feira, as manifestações em Cali e na capital, Bogotá, terminaram com diversos ataques a prédios do governo e ao sistema de transporte e obrigaram governos locais a declararem toque de recolher. O prefeito de Cali, Jorge Iván Ospina, estimou as perdas por saques e  vandalismo em 80 bilhões de pesos (R$ 114 milhões), e denunciou o bloqueio das vias de entrada e saída da cidade de 2,5 milhões de habitantes.

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Para analistas, os efeitos sociais que a pandemia da Covid-19 causou no país e o atraso nas campanhas de vacinação em massa, entre outros fatores, também serviram para aumentar o descontentamento da população.

Até agora, cerca de 4 milhões de colombianos, menos de 8% da população, receberam a primeira dose da vacina, e apenas 3% tomou duas doses. Enquanto isso, o país  registrou, na última quinta-feira, 505 mortos, a maior cifra reportada em um único dia desde o início da pandemia. Os hospitais estão à beira do colapso.

— A pandemia exacerbou a tensão na Colômbia e aumentou a vulnerabilidade de muitos setores sociais e a pobreza dos mais pobres — afirma Paladini. — Há um descontentamento generalizado e uma desconfiança absoluta de que o Estado possa resolver os problemas dos colombianos.

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Katherine Aguirre, pesquisadora associada do Instituto Igarapé, acredita que as manifestações são reflexo de um governo que "não está conectado com o povo e com suas prioridades e demandas", e cita o retrocesso de dez anos em temas de desigualdades.

— Cali é uma cidade com grandes desigualdades sociais, a segunda do continente em número de população negra, atrás apenas de Salvador, e onde a migração de venezuelanos atingiu índices altíssimos. Ao mesmo tempo que há muita problemática social é também onde os movimentos sociais estão mais fortalecidos — afirma a pesquisadora, que mora na cidade.

Além disso, aponta Aguirre, Duque simboliza o "não" ao acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) .

— Há um total desconhecimento, por parte do governo de Iván Duque, dos avanços do processo de paz com as Farc e um abandono das populações que viviam em territórios ocupados pela ex-guerrilha, o que levou a um aumento de mortes de líderes sociais. Nesse contexto, e diante do aumento da pobreza, os cidadãos veem a reforma tributária como uma afronta.

Déficit fiscal

O déficit fiscal da quarta maior economia da América Latina ficou em 7,8% do PIB, em 2020, e pode subir para 8,6% neste ano, de acordo com o Ministério da Fazenda. Mas a proposta de reforma tributária encontrou forte resistência no Congresso, inclusive de uma coalizão de partidos que apoia o governo de Duque.

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Os opositores argumentam que as mudanças onerariam desnecessariamente os contribuintes já afetados pela crise econômica causada pela pandemia do coronavírus.

— Dei uma instrução muito clara ao Ministério da Fazenda para que (...) construa um novo texto com o Congresso que alcance o consenso e que permita também nutrir-se de propostas valiosas— disse Duque, em seu programa diário de TV, Prevención y Acción, ao anunciar que vai mexer no texto do projeto.

O projeto de Lei de Solidariedade Sustentável aumentaria os impostos sobre indivíduos e empresas e eliminaria muitas isenções, com o objetivo de arrecadar cerca de US$ 6 bilhões (R$ 32 bilhões). Dentre os pontos polêmicos da proposta, estão a taxação dos serviços básicos voltados para atingir as classes média e alta e a criação de um novo imposto para quem ganha acima de US$ 663 (cerca de R$ 3.500) ao mês — em um país onde o salário mínimo é de US$ 234 (R$ 1.250).

Para os especialistas, a reforma tem alguns impactos positivos, especialmente na transferência de recursos para os mais pobres, mas a carga tributária recai sobre a classe média, que também sofreu com a crise da Covid-19.

— Tampouco há um esforço adicional claro para fazer com que os mais ricos paguem impostos sobre os ganhos de capital, como venda de ações, por exemplo, nem um controle mais sólido dos recursos das classes mais ricas nos paraísos fiscais — resume Paladini.