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'Que calem as armas', pede o Papa Francisco no primeiro dia da visita histórica ao Iraque

Dizendo-se um peregrino no 'berço da civilização', ele prega a convivência pacífica entre grupos e religiões e respeito aos protestos de jovens que pedem mais justiça e menos corrupção
Papa Francisco fala na Catedral da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Bagdá. Foto: AHMAD AL-RUBAYE / AFP
Papa Francisco fala na Catedral da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Bagdá. Foto: AHMAD AL-RUBAYE / AFP

BAGDÁ — "Que calem as armas", pediu, nesta sexta-feira, o Papa Francisco, pouco depois de chegar ao Iraque para a primeira vista de um Pontífice ao país dizimado por guerras e perseguições de minorias religiosas. Em uma viagem cercada por expectativas, ele saudou os cristãos que decidiram ficar, pediu o fim da corrupção no país e da violência.

Entre fortes medidas de segurança e com máscara devido à Covid-19, o Papa, de 84 anos, viajou como "um peregrino da paz" para confortar uma das mais antigas comunidades cristãs do mundo, marcada pela violência e pela pobreza. Francisco chegou ao aeroporto de Bagdá dizendo a repórteres que se sentia obrigado a fazer a viagem "emblemática" porque o país "foi martirizado por tantos anos".

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Centenas de pessoas se reuniram em pequenos aglomerados para vê-lo ser levado do local em uma BMW à prova de balas, um ponto de partida diferente para um Papa que normalmente insiste em usar carros pequenos e sem luxo. Uma carreata de dezenas de veículos o acompanhou para fora do complexo do aeroporto, que recentemente foi alvo de disparos de foguetes de grupos de milícias.

Em seu discurso no palácio presidencial na ultraprotegida Zona Verde de Bagdá, Francisco criticou os interesses estrangeiros que desestabilizaram o Iraque e toda a região e atingiram mais duramente as pessoas comuns.

— O Iraque sofreu os efeitos desastrosos das guerras, o flagelo do terrorismo e os conflitos sectários muitas vezes baseados em um fundamentalismo incapaz de aceitar a coexistência pacífica de diferentes grupos étnicos e religiosos — disse

Desde a derrota dos militantes do grupo terrorista Estado Islâmico (EI) em 2017, o Iraque tem visto um maior grau de segurança, embora a violência persista, muitas vezes na forma de ataques de foguetes por milícias alinhadas com o Irã contra alvos dos EUA e a ação militar dos americanos em resposta. Na quarta-feira, dez projéteis caíram na base de Ain al-Assad , usada por militares dos EUA no país.

Além disso, o EI continua sendo uma ameaça. Em janeiro, um ataque suicida reivindicado pelo grupo matou 32 pessoas em Bagdá.

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Durante o dia, o chefe dos 1,3 bilhão de católicos do mundo mencionou todas as questões candentes no Iraque diante de seus principais líderes, entre eles o presidente Barham Saleh, que lhe enviou um convite oficial para esta visita sem precedentes.

Barham Salih agradeceu ao Papa por ter feito a primeira visita papal ao Iraque "apesar das muitas recomendações para adiar" por causa da pandemia. Segundo ele, o fato de Francisco ter vindo de qualquer maneira "multiplica o valor desta visita para o povo iraquiano".

‘Chega de violência’

Em sua fala, o Papa fez um apelo pelo fim da violência, e de “extremismos, de facções, de intolerâncias". Ele também pediu o fim da "corrupção", o motivo pelo qual centenas de milhares de iraquianos protestaram no final de 2019, e que o país deixasse de reprimir seus jovens que pedem justiça.

— É preciso construir a justiça — afirmou.

O Pontífice também pediu para que ninguém seja considerado um “cidadão de segunda classe", principalmente os cristãos — hoje apenas 1% da população no Iraque, contra 5% antes da invasão americana de 2003 — e os yazidis, minoria perseguida pelo EI. Francisco denunciou o que chamou de "uma barbárie insensata e desumana" promovida no Iraque, o “berço da civilização".

O argentino ainda relembrou "a muito antiga presença de cristãos nesta terra", onde segundo a tradição nasceu Abraão, e defendeu "a participação deles na vida pública" como cidadãos que desfrutam plenamente de “direitos, liberdade e responsabilidade".

Catedral

Já na noite iraquiana, Francisco começou uma oração na Catedral da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde 58 pessoas morreram em 2010 em um ataque da rede terrorista al-Qaeda. Diante de um grupo reduzido de pessoas, o Papa lembrou os "irmãos e irmãs que morreram no atentado terrorista (...) e cuja beatificação está em processo" e agradeceu ao clero iraquiano pela sua presença e proximidade com os cristãos.

Papa Francisco se encontra com bispos, padres, seminaristas e catequistas na Catedral da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Bagdá Foto: VATICAN MEDIA / via REUTERS
Papa Francisco se encontra com bispos, padres, seminaristas e catequistas na Catedral da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Bagdá Foto: VATICAN MEDIA / via REUTERS

Bagdá garantiu que adotou todas as medidas de segurança "terrestres e aéreas". Nas tensões entre Irã e EUA no Iraque, um dos pequenos grupos que costuma reivindicar lançamentos de foguetes contra alvos americanos anunciou uma trégua durante a visita.

O Papa chamará os cristãos para permanecer ou retornar ao Iraque, onde restam 300 mil fiéis, contra 1,5 milhão há 20 anos. Os cristãos denunciam discriminações e a pouca ajuda do governo para recuperar suas casas e terras em meio aos conflitos.

Programação

Durante sua estadia, que terminará na segunda-feira, o Papa deve percorrer 1.445 km, especialmente pelo ar para evitar as áreas onde os extremistas se escondem. No sábado, pela primeira vez na História, ele será recebido na cidade sagrada de Najaf, no Sul, pelo grande aiatolá Ali Sistani uma das principais lideranças xiitas no mundo árabe.

O Papa também irá para a cidade histórica de Ur. Pela tradição bíblica, ali nasceu Abraão, apontado como o patriarca das três maiores religiões monoteístas do mundo: cristianismo, judaísmo e islamismo. Francisco ainda vai orar com representantes de comunidades religiosas minoritárias, como os yazidis.

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No domingo, o Papa visitará a província de Nínive, no Norte iraquiano, parcialmente dominada pelo EI até 2017. Em sua capital, Mossul, milhares de cristãos foram mortos pelos extremistas, que também destruíram algumas das centenárias igrejas da cidade. No local, ele prestará uma homenagem às vítimas da violência religiosa, e verá em primeira mão  o longo processo de reconstrução da comunidade.

Na última escala, no Curdistão iraquiano, será realizada uma missa em um estádio de Irbil, cidade fundada há mais de quatro mil anos e que serviu de porto seguro para milhares de pessoas que fugiram do grupo terrorista. Dali, voltará para Roma, marcando o fim de uma viagem que deveria ter ocorrido em2020, mas foi adiada por conta da pandemia.