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Revista chinesa dribla censura do governo em cobertura sobre Covid-19

Com mais de 200 jornalistas, o grupo Caixin publicou matérias sobre a demora das autoridades para conter a pandemia e manteve blog de Wuhan
Passageiros embarcam na estação de Wuhan, no dia 11 de abril Foto: NOEL CELIS / AFP
Passageiros embarcam na estação de Wuhan, no dia 11 de abril Foto: NOEL CELIS / AFP

ZURIQUE — Não há muitas brechas na muralha erguida pelo governo chinês para controlar as informações que circulam no país, e a crise do coronavírus elevou a vigilância dos censores para coibir quem questiona a linha oficial. A imprensa do país é dominada pelos veículos estatais , que seguem as diretrizes do Partido Comunista. Mas há exceções. O caso de maior sucesso é o do grupo de mídia Caixin , que nesta crise manteve sua reputação de  jornalismo independente num dos países mais restritivos do mundo.

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Com um time de mais de 200 jornalistas , o grupo esteve entre os primeiros a publicar indícios da demora das autoridades em tomar medidas mais sérias para conter a epidemia na primeira metade de janeiro, quando já se sabia da gravidade do problema. Uma das reportagens de maior repercussão indicou que as casas funerárias de Wuhan, marco zero da epidemia , estavam recebendo milhares de urnas funerárias por dia, o que reforçou o ceticismo sobre o número de mortos anunciado pelo governo.

Correção nos números

Nesta sexta-feira o governo local corrigiu o número de mortos divulgado antes , aumentando o total em 50%, para 3.869. Zhao Lijian, porta-voz do ministério do Exterior, negou que a China tenha escondido informações, e disse que a revisão dos números em Wuhan “reflete a abertura e a transparência de buscar a verdade nos fatos”. A revisão do governo fez muitos lembrarem alertas sobre possível subnotificação de casos como o feito pela Caixin no fim de março, na reportagem que incluiu fotos de uma casa funerária em Wuhan com 3.500 urnas funerárias, usadas após cremações.

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Fundada em 2010 a Caixin (notícias financeiras, em mandarim), é conhecida pelo histórico de reportagens sobre corrupção, principalmente na área econômica, que rendeu à fundadora da revista, Hu Shulin , o título de “a mulher mais perigosa da China” na imprensa. Antes de fundar a Caixin, Hu, hoje com 67 anos, já era uma das jornalistas mais respeitadas do país, como editora da revista Caijin, que se destacou na cobertura de uma epidemia anterior, a SARS (2002-204). Sua habilidade em driblar os limites da censura chinesa foi definida pela revista The Economist como “a arte do possível”. Críticos afirmam que a revista é só um peão no jogo de interesses dos poderosos,  e lembram uma suposta proximidade de Hu com o influente vice-presidente chinês, Wang Qishan .

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Maria Repnikova, especialista em comunicação política da Universidade da Georgia (EUA), acredita que o papel crítico da mídia na China seja subestimado. Embora não haja tolerância para prestação de contas com o governo central, muitos jornalistas investigativos tem impacto, principalmente a nível local. Um dos artifícios para escapar da censura é publicar fora da província que é alvo da reportagem.

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Repnikova disse ao GLOBO que a mídia na China durante a crise teve dois momentos: no início houve espaço para que alguns veículos e “jornalistas cidadãos” pressionassem o governo a reconhecer a extensão da crise. Mas logo o partido se mobilizou para administrar a crise e a imprensa passou a ter o papel de disseminar “energia positiva”, enfatizando os sucessos do governo e publicando estórias individuais que sinalizavam união nacional. Nesse cenário, a Caixin teve a seu favor uma longa história de “práticas perspicazes” de reportagem, segundo Repnikova.

— A Caixin tem alguns dos melhores jornalistas da China e uma longa experiência em driblar os limites do possível. É também uma revista financeira, o que a torna menos sensível — explica. — Suas reportagens são produzidas como uma pesquisa científica e raramente é publicada qualquer provocação pessoal. Seu estilo é construtivo, oferece soluções para os problemas.

'Diário de Wuhan'

Com uma versão em inglês, a Caixin virou uma rara referência para o mundo de jornalismo investigativo "Made in China”. Dentro do país, é alvo de críticas pela exposição de temas incômodos da China para o exterior. Além de manter um time de repórteres em Wuhan durante os 76 dias em que a cidade ficou em quarentena coletiva, a Caixin publicou o blog “ Diário de Wuhan ”, em que a escritora Fangfang atraiu milhões de leitores ao relatar os dias em isolamento no epicentro da pandemia. O sucesso virou tempestade política quando setores nacionalistas passaram a atacar a escritora por macular a imagem da China ao aceitar a proposta de publicar o diário em livros em inglês e alemão.

— Quantas pessoas morreram em Wuhan e tiveram suas famílias destruídas? — escreveu Fangfang em 31 de janeiro. — Mas até agora ninguém pediu desculpas ou assumiu responsabilidade. Eu vi um escritor usar a frase “vitória completa”. Do que eles estão falando?