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Sessenta dias depois do primeiro relato de morte, EUA já perderam 60 mil para o coronavírus

Vítimas fatais da Covid-19 no país já são mais que os americanos mortos durante os 19 anos da Guerra do Vietnã
Supervisora de crematório em Maryland, nos EUA, checa nome de corpos que aguardam para serem cremados Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP
Supervisora de crematório em Maryland, nos EUA, checa nome de corpos que aguardam para serem cremados Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP

WASHINGTON –  Há exatos 60 dias, os Estados Unidos recebiam a notícia da primeira morte por coronavírus no país. Dois meses depois, o número de vítimas fatais pela doença no país chegou a 60.207, mais do que os pouco mais de 58 mil americanos mortos durante a Guerra do Vietnã . Em primeiro de abril, eram 6.394 mortes. Apenas neste mês, o número multiplicou-se por quase dez.

O anúncio da primeira morte por coronavírus nos EUA veio de Seattle, no dia 29 de fevereiro. Mais tarde, autoridades locais anunciaram que outras duas mortes haviam ocorrido antes, no dia 26. Há uma semana, mais dois óbitos do início de fevereiro na Califórnia foram confirmados como decorrência do coronavírus.

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Os Estados Unidos têm o maior número absoluto de mortos por coronavírus no mundo. O vírus já atinge os 50 estados do país. Nova York registra o maior número de mortes, mais de 17 mil, seguido de Nova Jersey, Michigan, Massachusetts e Illinois.

Os Estados Unidos têm também o maior número de casos confirmados: um milhão. Os superlativos, no entanto, se explicam em parte pelo tamanho da população do país, o terceiro mais populoso no mundo, com quase 330 milhões de habitantes. Apesar de registrarem o maior número total de mortes, proporcionalmente à população os números de Espanha, Itália, França e Reino Unido são maiores.

Evolução do número de mortes por Covid-19 nos EUA Foto: Arte O Globo
Evolução do número de mortes por Covid-19 nos EUA Foto: Arte O Globo

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Ainda assim, o país ocupa a 12ª posição mundial de mortes proporcionais à população por coronavírus: 17,2 a cada 100 mil pessoas, de acordo com a Universidade Johns Hopkins, que compilou dados de 137 países. Apesar de muitas serem nações em desenvolvimento, onde informações são menos acessíveis, em mortes proporcionais os Estados Unidos têm número maior do que países desenvolvidos como Alemanha, onde a taxa é de 7,39 por 100 mil, e Canadá, com 7,67.

– Distanciamento social e restrições severas das atividades ajudam, e nós sabemos que isso tem que ser feito cedo. E nós poderíamos dizer que, se isso tivesse sido feito uma semana antes, talvez não tivesse ficado tão ruim [a situação dos EUA]. Mas não podemos ter certeza – diz o epidemiologista Arnold S. Monto,  professor   da  Universidade de Michigan. – Porque você não precisa só das restrições, você precisa que a população obedeça às restrições, e, nas grandes cidades, isso pode ser difícil.

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O número de mortes por dia nos EUA tem se mantido estável, o que pode indicar que alguns estados começaram a achatar suas curvas. Após a queda no número de novas hospitalizações em Nova York, o imunologista Anthony Fauci, da força-tarefa do presidente Donald Trump contra o coronavírus, chegou a dizer que “estamos realmente olhando para o começo disso”.

A tendência não é que o número de mortes aumente na mesma progressão geométrica que ocorreu até agora. Apesar de os analistas concordarem que os modelos epidêmicos têm limitações, pesquisa feita semanalmente com cerca de 20 cientistas pela Universidade de Massachusetts Amherst aponta para expectativa de 70 mil mortes até o dia 9 de maio e 150 mil até o fim do ano. A mesma pesquisa apontava há duas semanas, que abril seria o mês do pico no número de mortes.

Ainda assim, alguns modelos foram revisados para cima. O Instituto de Medidas e Avaliação da Universidade de Washington, que chegou a ser usado pela Casa Branca, aumentou nesta semana sua previsão de 60 mil mortes até agosto para 74 mil.

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Efeitos políticos

No início da crise, o presidente Trump minimizou a pandemia. Apesar de a Organização Mundial da Saúde ter declarado uma emergência no final de janeiro, ainda em 24 de fevereiro, Trump postou no Twitter que o coronavírus estava “muito sob controle nos Estados Unidos”, concluindo: “A bolsa de valores está começando a parecer muito boa pra mim!”.

No dia seguinte, tomou uma das primeiras medidas contra o vírus de seu governo, suspendendo a entrada de estrangeiros vindos da China.

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No dia 9 de março, o presidente voltou a tuitar: “No ano passado, 37.000 americanos morreram de gripe comum. (...) Nada foi fechado, a vida e a economia continuaram. Neste momento, temos 546 casos confirmados de coronavírus, com 22 mortes. Pense nisso!”.  Dois dias depois, bloqueou a entrada de viajantes da Europa.

– Muitas coisas poderiam ter sido feitas de maneira diferente – diz o epidemiologista e economista da saúde Eric Feigl-Ding, da Universidade Harvard. – Nós poderíamos ter reagido assim que soubemos que havia um grande perigo dos sinais vindos da China.

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O epidemiologista acredita que os Estados Unidos deveriam ter começado a se preparar já em fevereiro, comprando mais equipamentos de proteção, aumentando a capacidade de realizar testes e monitorando melhor as viagens internacionais.

– Os testes nos Estados Unidos ficaram congelados por três a quatro semanas. A Coreia do Sul e os Estados Unidos descobriram os primeiros casos no mesmo dia, no meio de janeiro. Mas a Coreia imediatamente aumentou os testes, enquanto os Estados Unidos ficaram congelados em 500 testes cumulativos por muitas semanas.

Agora, com quase 60 mil mortes mesmo após medidas de distanciamento social em todo o país, o presidente não apresenta o mesmo discurso cético. Desde 13 de março, quando decretou uma emergência nacional, passou a levar o coronavírus a sério, pedindo para que a população respeitasse o distanciamento social e destinando mais de US$ 2 trilhões para combater os efeitos econômicos negativos da doença.

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Trump chegou a fazer uma entrevista coletiva no final de março em frente a um gráfico que apontava para 100 mil a 220 mil mortes, caso os Estados Unidos seguissem as regras de distanciamento social. Se esse não fosse o caso, poderiam ser de mais de dois milhões.

Na semana seguinte, o presidente tentou mudar o discurso dizendo que os números ficariam “substancialmente abaixo” dos cem mil. Porém, esse não é o consenso dos cientistas no momento. O Dr. Anthony Fauci disse nesta terça-feira que tem “quase certeza” de que o vírus voltará no inverno.

O vírus pode atrapalhar os planos de reeleiçao de Trump em novembro, sendo um potencial indicador do motivo pelo qual o presidente tenta convencer o público de que os números não serão tão altos. Ou de por que apoia os manifestantes contra o isolamento em estados como Michigan e Pensilvânia, apesar de defender, ao mesmo tempo, as medidas de distanciamento social.

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A maioria dos americanos acredita que o presidente demorou muito para agir contra o vírus: 65%, segundo pesquisa da Pew Research deste mês.

– Uma das maiores mudanças que vimos na opinião pública nos últimos meses foi uma queda imensa na visão americana (positiva) sobre a economia – diz o pesquisador Brad Jones, da Pew.  – Como se pode esperar, a visão das pessoas sobre a economia está significativamente pior, mas isso aconteceu de forma mais rápida do que em qualquer outro momento, mesmo comparando com a crise financeira de 2008 ou a recessão de 2000.

Pesquisa divulgada ontem confirma o ceticismo cada vez maior do público em relação ao o presidente. Menos da metade (47%) dos americanos dizem que cogitariam seguir as recomendações do presidente sobre o coronavírus. O número é 15 pontos percentuais mais baixo do que o verificado no fim de março.