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'O show de Trump': como os briefings sobre a Covid-19 se tornaram atos de campanha

Com comícios e aglomerações proibidos por mais algum (longo) tempo, presidente usa tom eleitoral diante de jornalistas e milhões de espectadores
Donald Trump aponta para jornalista durante um dos briefings diários sobre a Covid-19 na Casa Branca, no dia 6 de abril Foto: KEVIN LAMARQUE / REUTERS
Donald Trump aponta para jornalista durante um dos briefings diários sobre a Covid-19 na Casa Branca, no dia 6 de abril Foto: KEVIN LAMARQUE / REUTERS

"Vai desaparecer. Um dia, como um milagre, ela vai desaparecer.”

Em uma tarde de 27 de fevereiro, quando os EUA registravam 60 casos da Covid-19, Donald Trump despejava confiança na hipótese do vírus que já deixava milhares de mortos ao redor do mundo não passar de um susto. No dia seguinte, repetiria a ideia em um comício na Carolina do Sul .

— Meus amigos, temos os melhores profissionais do mundo, os melhores do mundo. Estamos prontos — afirmou a uma multidão.

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Quase dois meses depois, os EUA e o mundo são um lugar bem diferente. Os comícios estão no passado. O número de infectados superou os 2 milhões , sendo que quase um terço dentro das fronteiras americanas, 650 mil. Medidas de isolamento atingem quase toda a população do país, e hospitais em regiões como Nova York e Nova Jersey estão perto do colapso. 140 mil morreram em dezenas de países.

Até o presidente americano precisou mudar . O desdém inicial à doença deu lugar a uma busca frenética por equipamentos, como respiradores , recomendações de distanciamento social, medidas de apoio à economia e números, muitos números. Por outro lado, Trump conseguiu adaptar à nova realidade um dos espaços onde ele se sente mais confortável: o palanque .

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Sem os grandes eventos da campanha à reeleição, o presidente passou a ver os briefings diários como oportunidade para exaltar o governo, suas ações contra a pandemia, distribuir informações questionáveis, atacar a imprensa e, claro, fazer elogios a si mesmo.

— Eu daria um 10 — afirmou, no dia 16 de março, ao se questionado sobre qual nota daria à suas ações contra o coronavírus. — Eu daria essa nota a nós mesmos e aos profissionais (de saúde).

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Trump tenta a todo custo mencionar o estado da economia antes das primeiras medidas de distanciamento social, assim como prometer que tudo ficará bem.

— É péssimo porque jamais tivemos uma economia tão bem como há algumas semanas. Mas estaremos de volta, eu acho que vamos voltar mais fortes do que nunca, porque aprendemos muito neste período — disse em 19 de março.

‘Lindo dia’

O formato segue alguns padrões, a começar pelo tempo, que chegou a quase duas horas e meia no fim de março. Uma duração parecida com as dos eventos de campanha.

Trump sempre tem a primeira palavra, em tom solene, quando fala sobre os assuntos mais urgentes: o aumento ou queda no número de notificações, medidas que tenha tomado recentemente ou anunciar uma nova estratégia contra as drogas na América Latina , como o fez no começo de de abril.

Seja na sala de imprensa ou no Rose Garden , ao ar livre (“Lindo dia no Rose Garden, grande distância entre as cadeiras, distanciamento social. Vocês jornalistas fazem isso muito bem”), o presidente nunca está sozinho: as figuras mais frequentes são o principal infectologista da força-tarefa da Casa Branca para a Covid-19, Anthony Fauci, um nome sempre ameaçado de demissão , o vice, Mike Pence e a diplomata Deborah Birx, coordenadora da força-tarefa. A eles cabem as partes mais técnicas: números, gráficos e até algumas opiniões divergentes.

No dia 20 de março, por exemplo, Trump usou umaboa dose de teoria da conspiração ao se referir ao Departamento de Estado como o “ Departamento do Estado Profund o”. Quase que imediatamente, Fauci, segurando o riso, passou a mão na testa como se dissesse “oh meu Deus”. A imagem viralizou nas redes sociais, sendo até republicada pelo próprio Trump.

Ataques à imprensa

Feitos os comentários, começa a parte mais tensa e longa: as perguntas da imprensa, quando algumas das frases mais emblemáticas foram ditas, assim como os embates verbais, a principal marca da relação entre o presidente e a imprensa neste mandato. E até nisso os briefings se assemelham à campanha: nos eventos, os gritos de “ Mídia Mentirosa ” são quase um mantra.

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No dia 13 de abril, Paula Reid , da CBS, perguntou o que ele havia feito para preparar os hospitais para o coronavírus. A resposta não foi muito presidencial.

— Você é vergonhosa. É tão vergonhosa a maneira como você disse isso!

Naquele mesmo dia, ele atacou uma matéria do New York Times que criticava o governo federal pela demora na adoção de medidas práticas.

— A matéria no New York Times é totalmente falsa, um jornal falso que escreve notícias falsas. Algum dia, talvez em cinco anos, quando eu não estiver mais aqui, esses jornais todos deixarão de funcionar porque ninguém os lê.

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A virulência de Trump levou alguns veículos de imprensa a pararem de transmitir a parte final do briefing, incluindo a Fox News, que embora tenha uma visão editorial favorável à do presidente, não está livre dos ataques. Quando a transmissão se torna inevitável, há outras ferramentas, como os créditos na tela.

“Irado, Trump transforma o briefing em uma sessão de propaganda”, escrevia a CNN em sua tela no dia 14 de abril.