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Única opositora a Morales presa, Áñez se torna bode expiatório na Bolívia

Maioria dos principais líderes políticos que pressionaram pela renúncia do ex-presidente deixaram o país ou estão imunes à ação judicial
Apoiadores da ex-presidente Jeanine Áñez pedem sua libertação do lado de fora do Centro Penitenciário Feminino de Miraflores, onde ela está detida em prisão preventiva Foto: JORGE BERNAL / AFP
Apoiadores da ex-presidente Jeanine Áñez pedem sua libertação do lado de fora do Centro Penitenciário Feminino de Miraflores, onde ela está detida em prisão preventiva Foto: JORGE BERNAL / AFP

Acusada em três processos diferentes — por genocídio, terrorismo e conspiração — e presa preventivamente há cinco meses, a ex-presidente interina da Bolívia Jeanine Áñez tornou-se uma espécie de bode expiatório entre os atores políticos que participaram do processo que culminou com a renúncia de Evo Morales, em novembro de 2019. Apoiada por forças opositoras bem mais conhecidas e poderosas internamente do que ela, como o hoje governador Luis Fernando Camacho , Áñez é a única detida preventivamente em um julgamento que pode, de certa forma, ofuscar o atual governo do presidente Luis Arce, aliado de Morales.

No último sábado, Áñez, de 54 anos, se autolesionou na prisão, em uma tentativa de suicídio, segundo seus advogados. Sua saúde é estável, mas ela estaria sofrendo forte depressão pelos meses na prisão. No domingo, uma representante do escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos visitou a ex-presidente e pediu que sua saúde, mental e psicológica, seja preservada. O mesmo pedido foi feito na segunda-feira por 23 ex-presidentes da região, incluindo os bolivianos Carlos Mesa, Jorge Quiroga e Jaime Paz, que assinaram um comunicado pedindo às autoridades que "preservem a vida e a integridade física e psicológica" de Áñez.

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Pouco conhecida politicamente fora de seu estado natal, Beni, Áñez era a segunda vice-presidente do Senado quando, dois dias após a renúncia de Morales, declarou-se presidente interina em um processo controverso, sem quórum em nenhuma das duas Casas do Congresso boliviano — graças à ausência das bancadas majoritárias do Movimento ao Socialismo (MAS), de Arce e Morales.

No entanto, os principais dirigentes políticos que pressionaram pela queda de Morales e compuseram seu ministério estão livres. Eles fugiram do país — caso do ex-ministro de governo Arturo Murillo, que acabou preso nos EUA , acusado de suborno e lavagem de dinheiro, e do ex-ministro da Defesa Fernando López — ou têm cargos eletivos e estão imunes à ação judicial, como o líder de Santa Cruz Luis Fernando Camacho, que se elegeu governador.

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O uso abusivo da prisão preventiva é comum na Bolívia: mais de 60% dos acusados aguardam seus julgamentos presos. Mas ainda que o sistema judicial boliviano permita sua detenção, há diversos abusos processuais no caso, concordam analistas ouvidos pelo GLOBO. A ex-presidente não tinha intenção de deixar o país quando foi detida, por exemplo, um fator que tornaria sua detenção desnecessária.

— Ela é sem dúvida um bode expiatório, a figura mais visível do governo anterior. Por isso, sua prisão e todo o processo judicial são profundamente simbólicos — afirma Daniel Moreno, sociólogo e pesquisador da Ciudadanía (Comunidade de Estudos Sociais e Ação Pública), que ressalta que os abusos estão sendo respaldados pelo Executivo. — Ministros e porta-vozes do governo indicam que Arce está de acordo com as condições em que ela se encontra. Com isso, o presidente condiciona sua política interna a uma lógica de confrontação.

A reforma do Judiciário, uma das promessas de Arce durante a campanha do ano passado, chegou a ser iniciada, mas o processo foi paralisado. Agora, o caso passa a "sensação de que o sistema judicial não é imparcial", afirma o analista político boliviano Marcelo Arequipa.

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— O que vemos até agora é uma tentativa de prolongar sua prisão preventiva com mais essa acusação [na semana passada, a ex-presidente foi acusada por genocídio ]. Infelizmente há muitos casos similares no país.  E quando ela é levada a hospitais, volta para a prisão e se autolesiona, desata notícias e ruídos contraproducentes ao governo e a seu regime penitenciário. Há uma necessidade imperiosa de haver uma reforma judicial. Há um sentimento geral de impunidade com a Justiça no país, e se percebe que, em temas políticos, essa impunidade é ainda pior.

Áñez teve um mandato polêmico, com acusações de corrupção , uma tentativa de reeleição, da qual acabou desistindo após críticas. Também houve a violenta repressão aos protestos na cidade de Sacaba e na usina de gás Senkata, na cidade de El Alto, que deixaram 22 mortos e foram classificados como massacres em um relatório contundente da  Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), publicado na semana passada. Ela deixou o poder em novembro de 2020, após a eleição de Arce, e foi presa em março deste ano.

— Após o informe da CIDH, fica ainda mais claro que seu governo tem que ser responsabilizado pelo que aconteceu nos protestos, mas em um processo justo. Áñez é o elo mais fraco de todo esse conflito — conclui Arequipa.