Exclusivo para Assinantes
Mundo

'Vejo perigo de aventuras antidemocráticas na América Latina com a pandemia', diz pesquisadora da FGV

Daniela Campello aponta papel destacado dos militares em muitos países, embora seu compromisso institucional seja diverso
Militares fazem patrulha nas ruas da Cidade do México Foto: ALFREDO ESTRELLA / AFP
Militares fazem patrulha nas ruas da Cidade do México Foto: ALFREDO ESTRELLA / AFP

O ano de 2020 já era visto como muito complicado antes da pandemia por pesquisadores e cientistas políticos que acompanham de perto os movimentos políticos e econômicos na América Latina, entre eles Daniela Campello , da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EBAPE).

Verdades e mentiras: Notícias falsas sobre coronavírus provocam pânico na América Latina

Com a crise do coronavírus, afirmou Daniela em entrevista ao GLOBO, a situação deteriorou-se ainda mais e surgiram alertas sobre o impacto que ela poderá ter sobre a democracia . “Tínhamos muitos presidentes enfraquecidos que agora, com a pandemia, têm uma justificava para endurecer posições, adotar medidas de rígido controle social”, disse ela. Hoje, afirmou a pesquisadora da FGV, “a democracia latino-americana está de mãos atadas”.

O ano passado foi marcado por crises políticas e sociais delicadas em países como Chile, Bolívia, Venezuela e Equador. Como isso convive com a pandemia?

Muitos presidentes já vinham atravessando processos de enfraquecimento, junto com a desaceleração econômica. Já víamos presidentes e governos mais frágeis.Em circunstâncias normais, essas fragilidades muitas vezes já levam a rupturas institucionais, rupturas democráticas. Tivemos viradas fortes nas décadas de 60, 80, precedidas de quedas muito expressivas na economia. Nesses períodos, rupturas são comuns. Com a chegada da Covid-19, esses mesmos presidentes frágeis passaram a ter o poder de endurecer, usando a pandemia como justificativa.

A pandemia deu a alguns presidentes e seus governos poderes que eles não tinham em 2019?

Sim. Por um lado, eles estão ameaçados pela pandemia, mas por outro ganharam um poder que não tinham. Ganharam, como dizia antes, a possibilidade de endurecer.

Como a senhora vê o curto prazo na região?

Existe uma incógnita em muitos países como Venezuela, Equador, Bolívia e também o Brasil, sobre o papel dos militares e o que eles farão nesta situação crítica. Os militares estão espalhados pelos países, controlam muitas coisas, o transporte, a distribuição de remédios, em alguns casos até mesmo fabricam medicamentos. São atores centrais neste momento.

Os militares se fortaleceram na pandemia?

Em todas as crises fortes, sobretudo em tragédias naturais e em matéria de saúde, os militares se fortalecem. Em 1999, houve um deslizamento de terra dramático na Venezuela, morreram muitas pessoas, e a partir daquele momento os militares entraram com força no governo de Hugo Chávez (1999-2013). Isso é natural nesse tipo de circunstâncias. O que é preciso saber, em muitos países, é se os militares estarão do lado do fortalecimento da democracia nesta pandemia.

O Chile é um exemplo?

Sim, no Chile a atuação dos militares se endureceu e o Chile é sempre um país no qual essa questão militar é delicada, por seu passado.

Bolívia?

No caso da Bolívia, não vejo que sejam atores muito relevantes, mas é bom lembrar que cidades como Santa Cruz de la Sierra foram militarizadas e os militares estão sendo usados para combater a pandemia . Acho que a Venezuela é um dos casos mais complexos, sem dúvida. E o Brasil também, onde temos um presidente que não é radical com o isolamento social, mas os militares têm uma presença forte. Um paradoxo.

Que riscos a senhora vê para a democracia latino-americana?

De uma maneira geral, a democracia está mais sob risco hoje, em todos os lugares. Já  imaginávamos um período de instabilidade, existiam riscos de rupturas, e com a Covid-19 os presidentes que já estavam enfraquecidos conseguiram um elemento que lhes permite reagir com força, em caso de se sentirem ameaçados.

Em países como Argentina e Peru, não se percebe isso...

Não, nem um pouco. São governos que atuaram com firmeza contra a pandemia, sem utilizar a força militar.

O Equador é uma incógnita.. .

No caso do Equador, só consigo imaginar colapso. O país perdeu sua principal receita, o petróleo, deve dinheiro ao Fundo Monetário Internacional (FMI), não pode aplicar ajustes. Lenin Moreno é um presidente vulnerável, que tem na frente um ex-presidente como Rafael Correa (2007-2017), ainda muito influente, ele ainda é, para muitas pessoas, uma lembrança de bons tempos.

Democracia e pandemia criam um cenário inédito na região...

Sim, é uma questão. Vejo democracias de mãos atadas e perigo de aventuras antidemocráticas. Existe justificativa e margem de manobra. Se a pandemia tivesse ocorrido em 2010, em anos de bonança econômica, teria sido bem diferente.