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Análise: Como os coletes amarelos da França diferem de outros movimentos populistas

Foco da revolta é incapacidade de pagar as contas
Manifestante de colete amarelo exibe a bandeira francesa durante o protesto em Paris Foto: ALAIN JOCARD / AFP/1-12-2018
Manifestante de colete amarelo exibe a bandeira francesa durante o protesto em Paris Foto: ALAIN JOCARD / AFP/1-12-2018

PARIS — Muito pouco, muito tarde: essa foi a reação dos coletes amarelos ao súbito recuo do governo francês dias atrás no aumento do imposto de combustíveis. Os manifestantes, que mergulharam a França num turbilhão com protestos violentos nas últimas semanas, querem mais, muito mais, e querem antes do que tarde — impostos mais baixos, salários mais altos, a libertação do medo financeiro e uma vida melhor.

Essas demandas mais profundas, a incapacidade do governo de acompanhar os acontecimentos e o ressentimento feroz em relação a cidades prósperas e bem-sucedidas funcionam como um fio condutor para levantes populistas no Ocidente, inclusive em Reino Unido, Itália, Estados Unidos e, em menor extensão, na Europa Central.

O que liga essas insurreições, além das demandas, é uma rejeição a partidos, sindicatos e instituições governamentais existentes, que são vistos como incapazes de canalizar a profundidade de suas queixas ou de oferecer uma resposta à insegurança econômica.

Mas o que torna a revolta da França diferente é que ela não seguiu o habitual manual populista. Não está ligada a um partido político, muito menos a um partido de direita. Não se concentra em raça ou imigração, e essas questões não aparecem na lista de demandas dos coletes amarelos. Não é liderada por um único líder incendiário. O nacionalismo não está na agenda.

A revolta é principalmente orgânica, espontânea e autodeterminada. É principalmente sobre classe. É sobre a incapacidade de pagar as contas.

Foto: REGIS DUVIGNAU / REUTERS
Foto: REGIS DUVIGNAU / REUTERS

Nesse sentido, é mais Occupy que Órban — mais parecida com os protestos contra Wall Street dirigidos pelos trabalhadores pobres nos Estados Unidos do que com o líder cada vez mais autoritário da Hungria, Viktor Órban.

Em Paris, foram as luxuosas ruas comerciais, a Avenida Kleber e a Rua de Rivoli — insolentes símbolos do privilégio urbano comparados com as províncias insípidas de onde surgiram os coletes amarelos — onde as vitrines foram quebradas no sábado.

Mas também se trata de uma profunda desconfiança das instituições, que são vistas como se estivessem agindo contra os interesses dos cidadãos, e isso tornará a crise particularmente difícil para o governo resolver. Os coletes amarelos afastam os políticos e rejeitam os socialistas, a extrema direita, o movimento político centrista do presidente Emmanuel Macron e todos os demais.

Nenhum lado antecipou o movimento, disse o cientista político Dominique Reynié.

— O sistema está em crise — afirmou Reynié.

De fato, pelo menos até agora, o movimento francês permanece relativamente desestruturado. Ainda não foi sequestrado nem pela nacionalista de extrema direita Marine Le Pen, nem pelo líder de extrema esquerda Jean-Luc Mélenchon, por mais que tentassem reivindicar sua posse.

E é isso que torna o movimento francês único, comparado com, digamos, o Movimento 5 Estrelas na Itália, que cresceu a partir de uma repugnância semelhante em relação aos partidos políticos e uma desconfiança das elites, e que se manteve como a expressão autêntica da vontade popular.

Um colete amarelo onde se lê "Macron traidor, o povo tem fome", em bloqueio no Sul da França Foto: PASCAL GUYOT / AFP
Um colete amarelo onde se lê "Macron traidor, o povo tem fome", em bloqueio no Sul da França Foto: PASCAL GUYOT / AFP

Mas o 5 Estrelas sempre foi menos um movimento do que um partido político da nova era. Enquanto era organizado por meio da Internet, foi liderado por figuras proeminentes (Beppe Grillo, por exemplo), bem como por pessoas mais obscuras (os Casaleggios) que alimentaram, canalizaram e aproveitaram o descontentamento popular desde o início.

O mesmo pode ser dito do Partido da Independência do Reino Unido, o Ukip, agora em dificuldades, que deu voz ao Brexit e à rejeição do público às estruturas da União Europeia, bem como às divisões de classe. Ou, aliás, do presidente Donald Trump, que demonstra desprezo pelas instituições. Seus partidários rurais concordam com ele.

— São os mesmos medo, raiva e ansiedade na França, na Itália e no Reino Unido — disse Enrico Letta, ex-primeiro-ministro da Itália, que atualmente leciona na Universidade Sciences Po, em Paris.

Nos 30 anos após a Segunda Guerra Mundial, “eles estavam no topo do mundo”, disse Letta, “no centro”. Esses países “viviam com um nível muito alto de bem-estar médio”, explicou.

— Agora, há um grande medo de ver tudo escapar.

Esse medo transcende todos os outros. Assim, na Itália, a proposta do Movimento 5 Estrelas de uma renda garantida, como o auxílio desemprego, ajudou o partido a conquistar o Sul empobrecido. No Reino Unido, o Brexit foi vendido em parte como uma fuga da suposta incapacidade financeira da União Europeia.

— Há essa angústia social que existe mais ou menos em toda parte — observou Marc Lazar, especialista em História da Itália na Sciences Po. — De pessoas que estão muito preocupadas com o futuro. Elas não apenas sofrem, mas também têm profunda desconfiança em relação a instituições e partidos políticos. É isso que estamos vendo em toda a Europa.

Comparando os quatro países — Reino Unido, França, Itália e Estados Unidos — Christophe Guilluy, um geógrafo francês que estudou a demografia dos “esquecidos”, disse que “a sociologia do povo em rebelião é a mesma”.

— São pessoas que se sentem ameaçadas pelo modelo econômico atual.

Manifestante dos coletes amarelos usando gorro de Papai Noel: "Fora Macron" Foto: PASCAL ROSSIGNOL / REUTERS
Manifestante dos coletes amarelos usando gorro de Papai Noel: "Fora Macron" Foto: PASCAL ROSSIGNOL / REUTERS

Na França, a fúria na distância percebida do Executivo não ajudou o governo.

— O presidente não falou nem uma vez com os franceses — disse na terça-feira o porta-voz dos coletes amarelos Éric Drouet, referindo-se ao relativo silêncio de Macron na semana passada. — Há uma negação total do nosso presidente.

A combinação de descontentamento e desconfiança tornou os coletes amarelos uma força em expansão que quase certamente ainda não atingiu seu limite. O protesto já passou de uma revolta devido a um pequeno aumento do imposto sobre os combustíveis para demandas por salários mais altos e mais.

— Nos dê mais poder de compra, agora! — disse Jean-François Barnaba, porta-voz dos coletes no departamento administrativo de Indre, à BFM TV na terça-feira.

— O imposto sobre o combustível foi apenas o começo — disse Tony Roussel, porta-voz do movimento em Marselha. — Existem todos os outros impostos. Existem salários. Existe o salário mínimo.

A resposta do governo é especialmente preocupante. Por um lado, altos funcionários expressam simpatia, não ousando de outra forma, pois as pesquisas mostram amplo apoio ao movimento; por outro, os mesmos funcionários estão zangados e exasperados com o violento desafio à estrutura institucional da França.

O resultado é uma espécie de paralisia, suspendendo os ajustes que provavelmente atrairão mais desafios.

— Eles ainda não entenderam nossas demandas — disse Roussel por telefone esta semana. — Isto foi como um fogo de artifício na água — disse ele sobre a suspensão de seis meses do governo do aumento do imposto sobre combustível, depois retirado da lei orçamentária de 2019.

Os protestos continuarão, prometeu, até que concessões mais profundas sejam feitas.