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Mundo Eleições EUA 2020

Análise: A maconha pode ajudar Biden a curar uma nação dividida?

Número de medidas aprovadas nas urnas sobre a liberação do uso da substância, medicinal e recreativo, mostra visão cada vez mais parecida entre eleitores dos dois principais partidos
Ativistas pela liberação da maconha celebram o início das vendas para uso recreativo no Oregon, em 2015 Foto: Steve Dipaola / REUTERS
Ativistas pela liberação da maconha celebram o início das vendas para uso recreativo no Oregon, em 2015 Foto: Steve Dipaola / REUTERS

NOVA YORK — Depois que cinco estados — Arizona, Mississipi, Montana, Nova Jersey e Dakota do Sul — aprovaram, nas eleições, medidas relacionadas ao uso de maconha na semana passada, a droga será legal, de alguma forma, para 70% da população dos EUA. Um terço do país não depende sequer de uma recomendação médica, mas essa não é a surpresa.

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O mais notável é que, ao contrário do passado, tudo isso ocorreu sem grande comoção pública. Neste momento, há preocupações maiores para a população. Mas essa é a hora que as empresas e investidores do setor estavam esperando: passarem a ser considerados uma indústria legítima, ao invés de serem o centro de uma polêmica eleitoral. Daqui em diante, o objetivo é fazer com que a maconha soe tão normal como fast food, vinho ou outros itens do gênero encontrados nas lojas ao redor dos EUA.

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Para a indústria florescer, ela precisa da ajuda do governo, e as perspectivas para tal estão cada vez melhores. Dois terços dos adultos nos EUA são a favor da legalização  — 91% se você incluir aqueles que apoiam ao menos para fins médicos, de acordo com o Centro de Pesquisas Pew. Isso é mais do que o percentual de americanos que apoiam o direito ao aborto ou que consideram que a ação humana contribui para as mudanças no clima.

Bipartidarismo da maconha

As diferenças entre defensores dos dois partidos também está diminuindo, com mais da metade dos republicanos defendendo a legalização da maconha. No Mississippi, que vota com o Partido Republicano há décadas, a Iniciativa 65 — a menos restritiva das duas propostas relativas ao uso medicinal da maconha que foram a votação semana passada — foi criticada pelo governador Tate Reeves como “muito liberal” para “não chapados”.

Mesmo assim, ela passou com 74% dos votos. E enquanto Joe Biden assume a Presidência em janeiro e a formação do Congresso segue refletindo a divisão nacional, a maconha pode se tornar um dos raros temas sobre o qual quase todo mundo está de acordo.

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O crescente apoio à maconha em estados republicanos segue na linha de uma proposta a ser votada no Senado, o Ato para Execução Bancária Segura e Justa, que permitirá a instituições financeiras realizar negócios, de forma legal, com empresas do setor da maconha. Será um dos mais construtivos avanços para a indústria antes da própria legalização em nível federal.

As empresas do setor tem motivos para manter a esperança de que o novo governo vai adotar novas mudanças, como reclassificar ou mesmo excluir a maconha da lista de substâncias controladas. Com isso, os estados estariam livres para decidir a melhor forma de lidar com ela, o que pode mais palatável com os conservadores do que tentar mudar as leis federais, como escreveram Isaac Boltansky e Merrill Ross, analistas da Compass Point Pesquisa & Comércio LLC, em um relatório do dia 26 de outubro.

Regras

A maconha hoje é uma droga de Categoria 1, a mesma da heroína, reservada a narcóticos com os mais altos potenciais para uso abusivo e que não possuem uso médico permitido. Já na Categoria 2 estão a cocaína, o fentanil, a metanfetamina e a oxicodona, algumas delas são a base da crise sanitária relacionada ao uso de opioides nos EUA. Para os defensores da legalização da maconha, isso não faz sentido.

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Caso seja removida da lista, isso representaria um benefício considerável aos números das companhias. Elas ainda querem que o governo federal permita o comércio entre estados onde o uso já é legalizado. Hoje, se uma empresa com uma fábrica no Colorado quiser transportar o produto para Montana, isso será enquadrado como tráfico, um crime grave. Além disso, leva tempo e dinheiro para construir uma infraestrutura em vários locais.

Alguns dos maiores desafios em tirar empresas do setor de maconha do papel é superar as barreiras regulatórias e o custoso processo de expansão pelos EUA. Isso ajudou o mercado ilícito de maconha a manter sua vantagem com a venda de um produto mais barato. Na Califórnia, onde a maconha pode ser legalmente comprada, as transações ilegais ainda são maioria.

Não é à toa que as ações de companhias do setor — que chegaram a ser vistas como queridinhas do mercado — perderam seu apelo em 2020. O assim chamado Índice da Cannabis caiu 38%. Em um dos casos, a MedMen Enterprises, que opera em vários estados, foi forçada a sair da Virgínia, onde um limitado mas potencialmente lucrativo mercado de maconha medicinal está começando a funcionar; suas ações despencaram 73% desde o começo do ano.

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Um efeito indesejado do esvaziamento do mercado pode ser jogar as companhias, cada vez com menos dinheiro, nos braços das gigantes do setor alimentício e de bebidas, que se preparam para invadir o setor assim que as leis permitirem. Para cervejarias e empresas de cigarros, pode ser o caminho mais promissor para o crescimento. Dito isso, a onda de pequenas empresas sendo engolidas pelos gigantes pode ir contra os esforços dos democratas para manter um certo nível de competitividade através de regras antitruste mais agressivas.

Bebidas com THC

Produtos de consumo casual são a chave para que as empresas do setor atinjam uma base mais robusta do que apenas os fumantes de maconha. A canadense Canopy Growth Corp, avaliada em US$ 9 bilhões, quer vender bebidas com THC — a substância psicoativa presente na maconha — já no ano que vem, competindo com a cerveja. Apesar da Canopy ser apoiada pelo conglomerado do setor de bebidas Constellation Brands Inc, ela estará batendo de frente com a Anheuser-Busch Inbev AB, que controla 42% do mercado norte-americano de cerveja.

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Aos poucos, as coisas estão se movendo de forma positiva para a indústria, mesmo que lentamente. Ao mesmo tempo, as empresas conseguiram estrategicamente entrar em estados onde a maconha para uso medicinal é permitida, se preparando para a liberação do uso recreativo. Por exemplo, os beneficiários imediatos das medidas votadas na semana passada incluem a Cureleaf Holdings, uma companhia de US$ 5,9 bilhões que é a líder do mercado em Nova Jersey e a segunda no Arizona, e a Harvest Health & Recreation Inc., que tem metade de sua receita vinda do Arizona, de acordo com um relatório de Pablo Zuanic, analista para a Cantor Fitzgerald & Co. Nova York e Pensilvânia devem ser as próximas, com as quedas nos orçamentos causadas pela Covid-19 potencialmente incentivando um movimento mais agressivo sobre o tema.

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No cenário nacional, se Biden está buscando um campo em comum com os republicanos, a maconha pode ser um lugar razoável para se começar. O ano de 2020 é realmente bizarro.