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Análise: Passo atrás de Macron não será suficiente para apaziguar a sociedade

Ira da classe média, que considera o sistema tributário francês injusto e benéfico só para os ricos, deve continuar
'Macron traidor, o povo tem fome', diz mensagem em colete de manifestante Foto: PASCAL GUYOT / AFP
'Macron traidor, o povo tem fome', diz mensagem em colete de manifestante Foto: PASCAL GUYOT / AFP

Analistas franceses ouvidos pelo GLOBO afirmam que a decisão de Macron de congelar por seis meses novos aumentos do imposto carbono, que incide sobre o diesel, não deve significar um apaziguamento da sociedade francesa. O presidente, afirmam, continuará a se ver às voltas com uma classe média encolerizada, que considera o sistema de impostos injusto e benéfico só para os ricos:

— As pessoas de classe média agora estão conscientes de suas dificuldades. Nas últimas décadas, a lenta, mas constante, mudança do sistema de impostos, mais pesados no centro da classe média e mais leves no topo, para financiar a redistribuição massiva para as categorias mais pobres, as transformou em ‘vacas leiteiras’ — diz Louis Chauvel, da Universidade de Luxemburgo. — Os gritos de frustração agora são tão estrondosos que adiar a alta do imposto carbono é uma resposta superficial.

Uma análise do Instituto de Políticas Públicas, centro de pesquisas francês, aponta que a política fiscal proposta por Macron para 2019 favorece sobretudo o 1% mais rico da população, que verá seu poder de compra aumentar 6%, em particular graças aos efeitos cumulativos do fim do imposto sobre grandes fortunas e à tributação fixa sobre os rendimentos de capital. Os benefícios concentram-se nos 0,4% mais ricos, que verão o seu poder de compra subir em média € 28 mil (R$ 124 mil) em 2019. Para o 0,1% do topo, o montante médio de enriquecimento aumenta mais de 20%, para 86.290 euros (R$ 378 mil).

Os maiores perdedores são os 20% dos franceses mais pobres, que verão seus recursos diminuírem, em grande parte devido a mudanças dos benefícios sociais e a novos impostos sobre o tabaco e a energia. A riqueza absoluta desse setor da população deve ser reduzida em € 3,5 bilhões, em um contexto em que os preços começam a subir.

A conta, todavia, é positiva para quem está um pouco acima em termos de rendimento médio — caso dos coletes amarelos, que em sua maioria provêm da classe média baixa.  Para a população nessa faixa, a renda disponível deve aumentar cerca de 1%, devido à queda no imposto sobre a habitação e à eliminação das contribuições de seguro-doença e desemprego. Isto é, as reformas de Macron podem beneficiar quem agora se revolta.

No entanto, os ganhos volumosos dos mais ricos são um dado importante para entender a insatisfação popular, diz o especialista em políticas públicas Julien Damon, da Sciences Po:

— Quase todos pedem a recriação de algum imposto sobre fortunas — afirma o sociólogo, em referência ao tributo que vigorou por quase 40 anos e foi abolido por Macron.

A França foi um dos últimos países europeus a manter a taxação e o aboliu no ano passado, por considerar que afetava a competitividade de sua economia. Agora, a moratória do imposto carbono cria um buraco no Orçamento, pois a taxa tinha a intenção de compensar a queda da arrecadação sobre as famílias ricas.

Os estudiosos ressaltam ser cedo para prever para onde vai o movimento, mas dizem que a percepção de injustiça deve permanecer.

— Não estou seguro de que o governo vá adotar uma nova política fiscal, com mais justiça social, o que significaria mais impostos para os ricos — diz Louis Maurin, do Observatório das Desigualdades. — As pessoas pagam impostos se entendem o objetivo da política do governo. A questão é: qual projeto eles apoiam?

As pesquisas divulgadas até agora indicam apoio massivo da população francesa aos coletes amarelos, mas não à violência dos protestos. As próximas manifestações estão marcadas para sábado, a despeito das medidas do governo.  Tanto líderes da extrema direita, com Marine Le Pen, quanto da extrema  esquerda, com Jean-Luc Mélenchon, se mostraram solidários ao movimento. Por ora, o esvaziamento do centro político parece um legado provável do movimento:

— A popularidade de Macron não deve subir nos próximos meses. Se acontecer, demorará anos — diz Damon. — Muitas pessoas votarão a favor dos dois extremos. Mesmo se não houver mais coletes amarelos em lugar algum, sabemos que eles vão aumentar.