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Análise: Prisão de Áñez evidencia falta de independência da Justiça na Bolívia e traz riscos para Arce

Para analistas, detenção não segue o devido processo legal e tem indícios de manobra política; caso pode prejudicar presidente aliado de Morales, que havia prometido reformar Judiciário
Manifestantes protestam em frente à sede da FELCC (Força Especial de Combate ao Crime) para comemorar a prisão da ex-presidente interina Jeanine Áñez em La Paz Foto: DAVID MERCADO / REUTERS
Manifestantes protestam em frente à sede da FELCC (Força Especial de Combate ao Crime) para comemorar a prisão da ex-presidente interina Jeanine Áñez em La Paz Foto: DAVID MERCADO / REUTERS

A prisão preventiva da ex-presidente interina da Bolívia Jeanine Áñez, acusada de sedição, terrorismo e conspiração oito meses depois de o ex-presidente Evo Morales ter sido acusado dos mesmos crimes sob seu governo, deixa em evidência a falta de independência da Justiça do país, um problema crônico que se arrasta há décadas. A reforma do Judiciário, uma das promessas do presidente Luis Arce, aliado de Morales, durante a campanha do ano passado, chegou a ser iniciada, mas o processo foi paralisado. Agora, com a decisão do Ministério Público de prender sua antecessora, opositores o acusam de revanchismo.

Na noite de domingo, a Justiça boliviana determinou quatro meses de prisão preventiva para a ex-presidente interina , enquanto ela é investigada por envolvimento nos eventos que culminaram na renúncia de Morales em 2019, fatos caracterizados pelo Ministério Público do país como um "suposto golpe de Estado". A justificativa para a prisão foi de que existia o risco de que ela fugisse do país.

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Para analistas ouvidos pelo GLOBO,  no entanto, a detenção não segue o devido processo legal e tem indícios claros de manobra política.

— Se o ex-presidente Evo Morales usou na prática o sistema de Justiça contra opositores, especialmente em Santa Cruz, o governo Áñez teve a oportunidade de fazer uma reforma para torná-lo independente e não o fez. Pelo contrário, também usou o sistema contra opositores, incluindo o próprio Morales, em um caso que classificamos como perseguição política — afirma César Muñoz, pesquisador da Human Rights Watch (HRW) . — Contra Morales não havia provas, em absoluto. É irônico que agora Áñez seja acusada pelo mesmo crime, também sem provas.

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O nome de Áñez aparece em uma denúncia feita em dezembro pela ex-deputada do Movimento ao Socialismo Lidia Patty contra o dirigente da região de Santa Cruz Luis Fernando Camacho, um dos protagonistas do movimento que culminou na saída de Morales. Camacho, porém, não teve sua prisão decretada — no início do mês, ele foi eleito governador do departamento (estado) de Santa Cruz. A ex-presidente interina, por outro lado, saiu desse pleito ainda mais fragilizada politicamente.

— Camacho tem forte apoio político em Santa Cruz, onde acaba de ser eleito governador. Sua figura conta com uma legitimidade importante. Áñez, pelo contrário, era candidata ao governo de Beni e perdeu — explica o cientista político boliviano Marcelo Arequipa, lembrando que juridicamente Camacho já compareceu a uma audiência para prestar esclarecimentos sobre o caso, e como foi eleito, não existe o risco de que deixe o país.

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Além do enfraquecimento progressivo da democracia, uma das consequências da prisão, para os analistas, é agravar a polarização e trazer de volta às ruas parte da mobilização que levou à saída de Morales, tanto por parte dos chamados comitês cívicos departamentais, liderados por empresários como Camacho, quando pela classe média urbana que liderou as manifestações conhecidas como "pititas ". Nesta segunda-feira, foram convocados os primeiros protestos em Santa Cruz, capital econômica do país e reduto da oposição liderada por Camacho.

Arce, por sua vez, corre o risco de perder parte do apoio que conquistou na eleição de 2020, quando teve 54,5% dos votos.

— Está claro que o Ministério Público não está atuando de maneira independente, mas como instância do governo federal. Arce se equivoca estrategicamente nessas decisões. Ele foi eleito por seu olhar mais conciliador, sua promessa de fazer pontes  — diz Daniel Moreno, sociólogo e pesquisador da Ciudadanía (Comunidade de Estudos Sociais e Ação Pública). — Seu ministro da Justiça começou um processo de diálogo para buscar consenso para reformas. Mas agora, através do Ministério Público, o presidente volta a utilizar o Judiciário como instrumento político. A prisão irá reforçar a polarização e as diferenças no país, e pode fragilizá-lo, com consequências imprevisíveis.

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Outro problema, também evidenciado com a detenção da ex-presidente, é o uso de prisão preventiva de forma "abusiva e excessiva" no país. Além disso, de acordo com Muñoz, da HRW, a legislação boliviana classifica de maneira muito ampla e ambígua o que seria um crime de terrorismo, o que dá margem para esse tipo de arbitrariedade jurídica.

— Mais de 60% dos acusados aguardam seus julgamentos presos, um número altíssimo. Na nossa visão, nada justificaria a prisão preventiva de Áñez. Além disso, claramente é um processo com acusações desproporcionais, onde não está sendo respeitado o devido processo — afirma o pesquisador da HRW. — Por outro lado, durante seu governo houve dois massacres gravíssimos [nas cidades de Sacaba e Senkata] que precisam ser investigados. Seu governo tem que ser responsabilizado por isso, mas com máxima independência e respeito do processo legal.